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Críticas

Cineplayers

Intenso e tecnicamente primoroso, vale como crítica social e entretenimento.

9,0

Qual o verdadeiro papel do Cinema? Hoje, após pouco mais de cem anos desde a invenção, duas principais correntes de pensamento debatem sobre o que a Sétima Arte deveria representar. De um lado, estão os defensores do entretenimento, de que o Cinema é uma forma de diversão, uma maneira de se desligar dos problemas do mundo real. Do outro, estão aqueles que apóiam a denúncia, a crítica, e que acreditam que os filmes não somente podem como também devem levar à reflexão e a uma maior consciência social.

Não acho que seja preciso optar por um destes caminhos. Ambos podem existir e conviver pacificamente, funcionando dentro de seus propósitos. Na verdade, algumas das maiores obras do Cinema têm a capacidade de combinar o entretenimento e a denúncia, transmitindo mensagens relevantes em uma narrativa fascinante de se assistir. Tropa de Elite, o filme que conseguiu levantar polêmica antes mesmo de sua estréia, é um exemplo de tudo aquilo que o Cinema é capaz: imergir o espectador em outro mundo durante duas horas e, como conseqüência, ensiná-lo a pensar.

Dirigido por José Padilha, responsável pelo sensacional documentário Ônibus 174, e escrito por ele mesmo, Bráulio Mantovani e Rodrigo Pimentel, Tropa de Elite se passa em 1997, pouco antes da visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro. Ali, encontramos o Capitão Nascimento, um dos comandantes do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), incumbido de garantir a segurança do Pontífice em um dos morros cariocas. Nascimento, prestes a ganhar um filho, está cansado do trabalho e acredita ser esta uma missão estúpida. Enquanto lida com seus problemas, procura um substituto, que pode estar nas figuras dos aspirantes Matias e Neto.

Acredito não ser temerário afirmar que Tropa de Elite é um dos mais corajosos filmes recentes, não apenas do Cinema nacional, mas do cenário internacional também. Poucos cineastas têm a coragem de fazer o que José Padilha fez, indo a fundo nos verdadeiros podres da engrenagem social de seu país, sem o receio de poupar quem quer que seja. Padilha atira contra todos: classe média, governo, polícia e, claro, os próprios criminosos.

Desta forma, Tropa de Elite consegue construir um revelador e apavorante panorama geral do conflito entre o tráfico de drogas e a polícia. Ao conectar os pontos deste processo, o filme apresenta um círculo vicioso sem qualquer final aparente, revelando que o papel de cada um de nós no funcionamento da criminalidade é muito maior do que se pode imaginar. Em um microcosmo da “Teoria do Caos”, uma ação acaba resultando em outra, mesmo que o agente da primeira nem fique sabendo daquilo que desencadeou.

“Eu me pergunto quantas crianças precisam morrer para que um playboy possa enrolar um baseado?”, pergunta o Capitão Nascimento em determinado momento de Tropa de Elite. A indagação, mais que válida, é o cerne da mensagem que José Padilha quer transmitir – e o faz de maneira chocante e eficiente. Tudo está conectado. As pessoas que reclamam da violência são mesmas que a patrocinam. O Estado que sofre com a criminalidade é o mesmo que paga vergonhosos quinhentos reais para um policial subir o morro e arriscar a vida.

O cineasta também não vira a câmera para longe disso. Tropa de Elite apresenta, como resultado do descaso do governo, a corrupção endêmica que assola os mais variados postos e graus hierárquicos da força policial. A certa altura do filme, um dos personagens explica porque recorre a outras fontes de renda: “Acha que vou subir o morro e arriscar minha vida por 500 reais por mês?” Ninguém tira sua razão. Da mesma forma, é extremamente corajosa a cena na qual Matias interrompe, com fúria, uma passeata contra a violência, indignando-se diante da hipocrisia de algumas daquelas pessoas.

Mas Tropa de Elite não é apenas denúncia. Outro mérito do roteiro é não deixar de lado os personagens, mostrando o que acontece com as pessoas que vivenciam diariamente esta guerra. As atitudes dos membros do BOPE, por exemplo, podem parecer extremas, mas é uma forma de agir inevitável e justificável dentro do ponto de vista deles. Mais do que uma luta por justiça (e eles sabem que, na verdade, nada vai mudar), seu dia-a-dia é uma batalha pela sobrevivência. Uma guerra que, como toda, tem vítimas de ambos os lados. Eles precisam agir assim se quiserem voltar às suas famílias.

E esta situação fica muito clara com a interpretação de Wagner Moura. Provavelmente o melhor ator da nova geração, capaz de ser diferenciado até em novela, Moura constrói um personagem que já nasce antológico no Cinema nacional. O Capitão Nascimento é um homem extremamente exaurido naquilo que faz, desgastado tanto física quanto emocionalmente. Ainda assim, supera os problemas para cumprir seu papel, mesmo que inserido em um inferno sem perspectivas de vitórias. O ator é extremamente hábil ao compor os dois lados do personagem, que precisa demonstrar segurança quando em ação, ainda que esteja devastado por dentro.

Nascimento pode até ser delineado de maneira cuidadosa, mas o principal arco dramático da história pertence ao personagem Matias. Interpretado por André Ramiro, Matias inicialmente apresenta-se como um policial idealista, que acredita no funcionamento das leis. Pouco a pouco, vai conhecendo as verdadeiras regras do jogo e o que é preciso fazer para sobreviver nela. Ramiro colabora para que esta mudança se torne gradual aos olhos do espectador e, de certa forma, fazer com que o estudante André Matias se torne o personagem mais trágico de Tropa de Elite.

E o que mais impressiona, especialmente para um cineasta que estréia em um trabalho de ficção, é que Tropa de Elite tem uma narrativa incrivelmente fluida, ainda que complexa. Explorando uma história não-linear, José Padilha e o montador Daniel Rezende criam um filme ágil, nervoso, que deixa o espectador sempre atento. Colabora para isto o estilo cru de direção de Padilha, sem qualquer glamour, extraindo o máximo de realidade em cada cena. A câmera tremida e a fotografia suja jogam o espectador diretamente neste mundo desconhecido para a maioria e o resultado é uma veracidade chocante e que vai causar impacto na maioria.

Tropa de Elite, porém, não é somente uma crítica ou tese de mestrado de alguém preocupado com a sociedade; é também o trabalho magistral de um cineasta com domínio de seu ofício. Isto pode ser percebido no equilíbrio que Padilha confere entre energia visceral de certas cenas com momentos mais calmos, nos quais o diretor desacelera a narrativa para se aproximar dos personagens e de suas histórias particulares. Além disso, o filme traz diversas cenas memoráveis, como aquelas passadas no treinamento, e que funcionam, de certa forma, como alívio cômico.

A composição dos planos e quadros de Tropa de Elite é mais um exemplo do exemplar trabalho técnico de Padilha. Além da já citada utilização da câmera em movimento, dando um tom de nervosismo ao filme, o diretor apresenta algumas tomadas impecáveis, das quais se destaca a que acompanha a chegada do BOPE em uma favela. A analogia, nesta cena, é clara e estarrecedora: impossível não tomar o cenário destruído da favela como o campo de batalha de uma interminável guerra.

O que também já nasce clássico em Tropa de Elite são algumas falas do roteiro. Além dos candidatos a bordões “Você é um fanfarrão”, “Ninguém sobe” e “Você é moleque”, existem outras frases afiadas e prontas para entrar em livros de citações, como as já comentadas neste texto e até o tapa de luva que Matias dá em seus colegas após uma discussão na faculdade. São diálogos pertinentes, completamente de acordo com o contexto do filme e com linguagem natural, do dia-a-dia, o que aumenta o grau de realismo.

Intenso, chocante e, acima de tudo, relevante, Tropa de Elite é um exemplo do que o Cinema pode alcançar, posicionando-se como o grande filme nacional dos últimos anos. Ainda perde em comparação ao virtuosismo de Cidade de Deus, mas é a obra mais importante a surgir no Brasil desde a produção de Fernando Meirelles. Exibindo louvável coragem, José Padilha aponta seu dedo para todos, inclusive para o espectador, e sua mensagem é tão forte que pode, inclusive, fazer alguma diferença. Por mais que quem assista ao filme não vivencie diariamente este mundo, todos saem do cinema certos de que colaboram, de alguma forma, para que ele exista. Se resta alguma esperança, é a de que as pessoas acordem para esta realidade.

E, neste caso, Tropa de Elite é um excelente despertador.

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