Robert Lepage falha, em parte, ao esconder sua truculência e a mesquinharia da classe média focalizada em seus filmes.
Como os demais trabalhos recentes do multiartista Robert Lepage, Triptyque (2013) estreou em meio a muita controvérsia. Enquanto os fãs se encarregam de ressaltar a genialidade de sempre do canadense, os nem tão fãs reclamam que Lepage hoje só estaria interessado na parte técnica, que seus trabalhos estão frios e formais, convencionais mesmo, e que o melhor de sua criação está no teatro e talvez já tenha ficado para trás.
Tryptique é uma adaptação adocicada e naturalmente reducionista de sua peça Lipsync, um petardo de nove horas de duração que trata da voz humana e suas limitações. Foca em três dos nove personagens originais: um cirurgião neurologista alemão, Thomas, alcóolatra e com sinais de Alzheimer; uma cantora de jazz de Montréal, Michelle, com um tumor no cérebro; e sua irmã esquizofrênica, Marie, recém-saída de um hospital psiquiátrico e que tenta reconstruir a vida trabalhando num sebo e escrevendo poemas. A cantora será operada pelo cirurgião, perderá a voz temporariamente como efeito secundário, além de falhas na memória, que lhe privará da lembrança da voz de seu pai, para ela muito importante, como se verá.
O melhor de Robert Lepage está lá: sua truculência. Há muitos suicídios na obra do diretor, autoflagelação, martírios e agonias múltiplas. Lepage filmou uma cirurgia de cérebro real e a inseriu no filme, com a equipe de efeitos especiais se encarregando de trocar o paciente pela atriz – o filme é co-dirigido por Pedro Pires, um especialista em efeitos visuais. Careca, muda e deprimida, a cantora Maria tem de reaprender a falar, em cenas que lembram alguns filmes de horror B hoje considerados clássicos.
Lepage povoa seus trabalhos com gente que não sabe lidar com emoções. As personagens se queixam o tempo todo uns dos outros, estão sempre insatisfeitas, além da frieza no trato com todos, exceto, talvez, quando estão em viagem fora de casa. A classe média das peças e filmes, ilustrados profissionais liberais, é mesquinha e solitária. Entediados, doentes e profundamente tristes, estão em ciclos viciosos de infelicidade, seja para si ou para os que estão a do lado deles. Sempre em busca de sua identidade, empreendem longas e tortuosas viagens de auto-conhecimento, internas e externas, que não os levam a nada, só a mais sofrimento. O fim da busca nunca lhes dará o alívio que talvez nem querem.
Esse é o melhor Lepage. No entanto, seu filme tem casamento, final feliz, imagens cartão-postal de Londres e inúmeras concessões forçadas que destoam do contexto exigente e intelectualizado artista forjado nos palcos. No teatro, Lepage consegue ir mais longe e ser muito mais profundo que em seus filmes. Ver Lepage nas telas é ter a prova de o quanto o cinema é uma expressão artística limitada.
Mas Lepage também já havia recolhido críticas de superficialidade por Lypsync. Parte da crítica não o perdoa pela versão Cirque du Soleil que ele fez de O Anel dos Nibelungos, de Wagner, para o Metropolitan de Nova York. Em ambos, o mesmo defeito: a parafernália técnica sufoca seus trabalhos. Essa barafunda está também em Tryptique: uma superposição de música, fotografia estourada, vozes e imagens sacras, reconstituições, aparições e outras intervenções que não dão trégua. Como diretor, Lepage é mão-pesada. Há quem não se importe, há quem veja nisso mesmo uma qualidade (eu, por exemplo), mas a maior parte do público se sente manipulada.
Lepage usou quatro versões diferentes do Frates, do compositor Arvo Pärt, a Sinfonia número 3 do Gorecki, Sorrowfull Songs, e um amontoado de imagens religiosas, freiras reais como atrizes, espiritualidade e quetais, além do próprio título, que faz referência a, em português, Santíssima Trindade cristã, Pai, Filho e Espírito Santo (isso dito, inclusive, no filme). Quis dar um certo ar transcendental nessas buscas identitárias. Soou apenas um tanto datado com esses ícones um tanto desajeitados na trama. Adicione o parlamento londrino, tantas vezes focalizado, e a trilha-sonora popularesca, fica difícil defender que Robert Lepage esteja no melhor de sua carreira aqui, mesmo que seus personagens, tão angustiados e imperfeitos, continuem lá, como que esperando que o diretor venha lhes perturbar em seu tormento magnífico.
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Para quem quiser saber mais da peça. Vende-se três ingressos para 3 apresentações de 3 horas cada uma, mas há a possibilidade de ser ver tudo junto, de meio-dia às 21h, com intervalos de 20 minutos entre cada parte. Ada, uma cantora de ópera, adota um órfão, Jeremy, depois que a mãe deste, Lupe, uma prostituta da Nicarágua, morre ao lado dela no avião. O marido de Ada, Thomas, o neurocirurgião, opera a cantora de jazz Marie. Sarah, uma ex-prostituta de Manchester que trabalha como faxineira na casa da fonoaudióloga de Ada, descobre que o irmão desaparecido na infância é hoje locutor da BBC. Este termina assassinado. Jackson, detetive da Scotland Yard, procura o assassino, de quem tem a voz gravada. Sebastian, um técnico de som, completa o elenco, assim como Michelle, a irmã esquizofrênica da cantora Marie. Todos os atores do filme fizeram os mesmos papéis no palco.
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