8,5
Vem sendo construído atualmente na nossa cinematografia um olhar distópico para um futuro que pode não existir, mas que escreve um porvir ilusório ainda que extremamente calcado nos sentimentos revoltosos do hoje. Em projetos de cinema exultantes como o de Adirley Queirós ou os desenhados em Boca de Loba e Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno, a ficção científica das minorias, de grande abrangência nas minorias, vem ser sacudido mais uma vez por Elena Meirelles e Lívia de Paiva em explosiva contemplação, promovendo uma dubiedade que as diretoras retrabalham quase cena a cena em camadas que atordoam, através de corpos de mulheres fora do padrão normativo - pretas e lésbicas.
O feminismo obviamente presente a partir de um registro atual do confronto é uma qualidade não apenas para o filme mas para essa construção do imaginário ficcional reinante hoje, agora em longa-metragem a partir do olhar de mulheres e 'manas' em suas particulares relações, e sair delas para criar ficção não tão científica assim; o filme deixa claro que aqueles corpos já viveram aquele 'futuro', que infelizmente é hoje. São meninas-mulheres-manas contando essa distopia criada com 'soldados de bem', 'chico cunha', 'novo brasil', que olha para esse adiante ao alcance da mão.
A cada novo diálogo/monólogo, o longa vai acrescentando as camadas temporais que o roteiro nega de cara. Situar de maneira turva a temporalidade e ganhar sustentação aos poucos, é um registro necessário para causar essa confusão que representa a não-mudança através dos tempos, porque o horror do hoje existe desde sempre na direção das minorias, não importando o tempo vivido porque estamos ainda nessa escuridão antiga. Então o filme joga aquelas personagens na escuridão do tempo para clarear aos poucos, tirar do breu as meninas que são trancafiadas por lá e ilumina-las - na luz branca, no sol insidioso na duna, na fogueira que ilumina o rostos e as memórias, e que monta o jogo da subjetividade do ato de imaginar.
A cena da fogueira, que inclusive pode ser pensado como a principal cena do projeto, carrega um sem número de referências antepassadas, como a cultura da relação de contar histórias ao redor do fogo típicos da ancestralidade negra, da condição típica cinematográfica também da arte de contar histórias e ampliar o olhar para outros lados, e não apenas sobre a dominação branca que captura todas as condições e rouba todos os lugares. Essa cena em particular também lida com um processo que foi exaltado por um longa recente de maior visibilidade, e que aqui tem maior expressão, que é a criação imagética particular a partir dos relatos; as personagens descrevem as situações vividas com muita segurança e veracidade, quase palpáveis.
O ar que se respira em Tremor Iê é, a um só tempo, irrespirável e encharcado dos ventos da mudança. Elena e Lívia têm consciência do espaço que querem buscar e foram procurar na raiz as vozes que melhor reverberariam suas inquietações e anseios. Um filme coberto da intimidade e do carinho que só quem já lutou junto adquire, e acaba adquirindo um diferenciado tom ao mostrar uma sociedade que espelha um futuro mais atual impossível, completamente inundado de suas vozes periféricas mostrando o resultado de anos de exclusão, equilibrando isso a um afeto genuíno em busca de se deixar ouvir.
Filme visto na Mostra de Cinema de Tiradentes
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