Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Idiossincrasia em corte e costura.

8,0
As índoles retratadas nesse drama psicológico são absolutamente cruéis. Também são fascinantes. Se o estranhamento pode provocar algum fascínio, não é exagero alegar que Trama Fantasma é suficientemente estranho por conseguir nos fascinar devido à conjuntura comportamental dos personagens e ao contexto no qual convivem compartilhando perversidade emotiva. Além do mais, além dos fenômenos emocionais, é um filme artesanal tal como as costuras que a câmera diligente capta, sempre trabalhando com luzes e cores. Pura elegância em cada quadro. 

Detalhes. Paul Thomas Anderson filma detalhes. Nos detalhes residem características que dão forma aos personagens, evidenciando comportamentos sem que estes sejam um estudo preciso de suas particularidades psíquicas, mas o quanto estes mesmos comportamentos implicam diretamente na relação entre três grandes personagens: um homem, sua irmã e sua musa – pronomes possessivos são salientes. É um filme que se sustenta no trio e nas individualidades que demarcam idiossincrasias. 

Intimidades. Anderson filma intimidades. Nas intimidades residem constatações de condutas que moldam os personagens revelados sem pudores em cena sob uma luz imprecisa, até o ponto em que identificamos estranhezas e finalmente a compreendemos. Em síntese é um trabalho sobre opressões em distintos níveis, tanto na atitude déspota do líder junto aos  empregados até a opressão psicológica que este líder suporta, repleto de manias e obsessões. 

A história se passa em Londres durante a década de 50. Reynolds Woodcock, um costureiro respeitadíssimo, trabalha em casa junto a várias outras costureiras que prestam serviço coerente aos caprichos obsessivos de seu mentor. Ele desenha e concebe vestidos para mulheres ricas. Woodcock preza por eficiência e emana autoridade, tendo na rotina o controle de tudo que gira em volta. Na primeira metade, o roteiro do próprio PTA busca apresentar o universo de seu protagonista. Alinhado e elegante, o visual combina a direção de arte com um figurino sofisticado, dando uma impressão de filme envelhecido, alguma grande obra inglesa setentista redescoberta.   

Nesse meio, homem e mulheres interagem. Woodcock se apoia sobre a irmã, Cyril Woodcock (Lesley Manville), parceira, conselheira e porto seguro. A mulher aparece como espelho do costureiro, mas numa versão racional. É provavelmente a personagem mais complexa e que oferece distintas vertentes de compreensão ao espectador. 

O texto do roteiro a princípio parece dizer respeito a alguém real ou, quem sabe, ser baseado em algum clássico da literatura inglesa. Uma adaptação convencional? Nada disso. É original e advém de uma lógica ambiente bem orquestrada: admitir a beleza da elite londrina e ressaltar a deformidade moral dos patriarcas, ruindo a imponência de seu poder ao apresentar dramas e, mais especificamente, perversões. Pasolini gostaria.   

Trama Fantasma explora o exercício do poder num meio comum, tratando do abuso de autoridade num ciclo repetitivo entre figuras cujas funções se assemelham a das agulhas e das linhas, itens úteis para a concepção de um vestido imaginado. As pessoas são itens particulares de Woodcock e sua musa nada mais é do que sua manequim. Sua musa e esposa, que atende por Alma Elson (Vicky Krieps), é tão enigmática quanto o costureiro, provocando-o em nome de um amor nocivo. É um fetiche. Esse thriller disfarçado de romance certamente definirá um dos casais mais insalubres do cinema.

Paul Thomas Anderson apresenta seu melhor texto desde Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), ainda que esteja narrativamente muito próximo ao de seus dois últimos trabalhos, O Mestre (Master, The, 2012) e Vício Inerente (Inherent Vice, 2014), que se entranhavam em personagens cuja complexidade psicológica era submetida a concepções quase oníricas. O diretor se responsabiliza pela cenografia e efetiva sua arte em imagem rudimentar, ao passo que dirige as cenas detalhando aquele universo: os dedos feridos pelas agulhas, por exemplo, contam através da imagem um pouco da identidade do protagonista.  

Ditado geralmente por emoções, o desenvolvimento do filme se acentua mediante as reações de seu exigente protagonista frente aos estímulos que lhe são lançados. Ele é desafiado. Ele é desrespeitado. E diante das hostilidades inesperadas, surpreende com reações imaturas e odiáveis, típicas de um machista frustrado cujo orgulho fora vencido pela desobediência de uma mulher que não se curvou a ele tal como outras outrora fizeram. Daí surgem longos e poderosos diálogos que estruturam a dinâmica desse casal cujo relacionamento persiste ao prazer da contestação. O insulto para alguns é um deleite. 

E tal dinâmica só é possível graças aos atores, especialmente ao excepcional Daniel Day-Lewis, que corporalmente consegue representar a imponência de um lorde inglês em gestos, seguindo o mesmo ritmo que profere palavras, sempre refinado e comedido, até o ponto que bruscamente constrange em virtude da arrogância. É um ímpeto brutal desatinado de alguém incapaz de lidar com frustrações, reagindo ferrenhamente como se atacasse com armas pontiagudas, similares às  agulhas ou lápis, seus instrumentos de ação.  

Paul Thomas Anderson, de maneira artesanal e prezando pela estética, apresenta um melodrama metódico com erotismo oprimido, cercado por tensões sexuais e largado a compulsão obsessiva de um considerável gênio. 

Comentários (1)

Faça login para comentar.