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Críticas

Cineplayers

Corpos em ebulição.

6,5
A experiência de Felipe Bragança como realizador tem amaciado sua autoralidade, permitindo um olhar menos hermético sobre a sociedade. Seu novo projeto pós Não Devore meu Coração! deixa essa porta aberta ao entendimento amplo, sem precisar de signos ininteligíveis para propor uma discussão social até profunda, mesmo que siga pautas necessárias de hoje vez por outra. Mesmo no anterior já víamos um Bragança menos afeito a portas trancadas para a compreensão, sem sacrificar o autor - possivelmente um ponto de amadurecimento que o coloca seguro no cinema que constrói com habilidade. Seu encontro com Catarina Wallenstein é fértil no terreno imagético e simples no terreno das ideias, sem jamais atribuir diminuição a esse olhar.

Olhar esse que no longa alcança Carmen Miranda, um elo de ligação forte entre Brasil e Portugal, que Bragança reestabelece com Catarina, como se mais uma vez a distância e as aproximações entre essas duas células pátrias voltassem a ser matizadas. Em cena, Catarina é Ana, uma atriz portuguesa prestes a encarar um espectro de Carmen em um filme dentro do filme. Ao abrir contato com essa persona tão mitificada quanto a de Carmen, Ana começa a interiorizar os processos dramáticos e expelir o resultado dos mesmos, em performances que desestruturam o filme e a própria experiência da diretora Catarina na pele da atriz Ana.

O filme abre com um corpo em cores jogado no chão. Ana, Carmen, Catarina... muitas mulheres precisam sobreviver e a ajuda vem das mãos de um anjo moderno típico da Lapa carioca de hoje, negro e gay. Com inserções em dois tempos diferentes, o filme mostra a morte e o posterior renascimento dessa fênix em vibrantes tons coloridos, e o processo pelo qual a versão de Ana 'atriz de método em busca da Carmen interior' é fotografado em preto e branco, ambos pela bela luz de Guilherme Tostes (que trabalhou com Bragança em 'Fernando que ganhou um Pássaro do Mar' e com Douglas Soares no sensorial 'Inocentes') e essas gradações tão díspares em energia e intenção, o sonho dourado literal e a realidade que o passado filmico e pálido representa, são a obra falando alto suas questões políticas contemporâneas.

O viés político nem sempre é discreto no filme, com áudio sobre pesquisa ibope sendo ouvido em fundo de cena e desfile de Sete de Setembro em determinado momento que, se não esvazia o roteiro, trás para ele uma aparente obrigatoriedade com o contemporâneo no que parece ser um expurgo social, completamente aceitável no momento em que vivemos; artistas são seres que podem verbalizar o agora de maneira poética e libertária, e 'Tragam-me...', como toda obra artística, é produto do seu tempo. Mas existe uma maneira de politizar discurso como Bragança sempre fez e torna a fazer aqui, com a política de corpos fora de seu habitat natural sendo resgatados por outros igualmente deslocados, de maneira mais imagética que discursiva. Quando opta por essa análise, o filme é muito feliz e ainda mais amplo.

O trabalho de atriz de Catarina é poderoso e serve ao filme de maneira completa, sendo ele sozinho de intensa expressividade. Esse processo de parceria que Bragança já exerceu outras vezes entende-se como muito rico como agregador de vozes a conjurar desejos. A realização do filme interno tem a participação de Helena Ignez como a diretora, o que por si só já abre espaço para o político em sua natureza, além de contar com um belíssimo cenário de autoria de Lia Maia, que marca o filme com seu impacto solar.

Tudo isso cria um apanhado de força para contar uma história relativamente simples sobre um processo de imersão cênica promovendo uma catarse interna sobre quem a vive. Nada relativamente novo em abordagem, mas incrivelmente eficiente em sua realização, ainda que flerte com o excesso de intenções.

Filme visto na Mostra de Cinema de Tiradentes

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