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Críticas

Cineplayers

“We´ve become a race of Peeping Toms.”

9,0

Talvez a frase acima, citada pela personagem de Thelma Ritter, em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), tenha servido como inspiração para que Michael Powell nomeasse o seu A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960), um filme que guarda uma semelhança muito achegada com todo o voyeurismo da obra de Hitchcock, mas com a crucial diferença de trocar a perspectiva de pontos de vista em relação a algum objeto ou pessoa em cena, ou mesmo fora de cena. Se no filme de 1954 temos um insight metalinguístico sobre o fascínio que o cinema tem de despertar a curiosidade do olhar, em especial em histórias de suspense (no caso, a suspeita de um assassinato), no trabalho de Powell esse fascínio ganha um contorno ainda mais mórbido, mesmo fetichista, quando compartilhamos não da visão de uma provável vítima desconfiada, mas sim a do próprio assassino. Através dessa obra, o diretor não somente incitou a natural curiosidade culposa do ser humano diante da morte alheia, como a tornou identificável, e até mesmo atraente.

A Tortura do Medo, contemporâneo de Psicose (Psycho, 1960), rompeu junto com a obra de Hitchcock, o que era até então onipresente no cinema americano: o momento da morte como algo um tanto quanto mentiroso, ou velado, assim como o sexo. Era inconcebível para a época colocar a morte como a razão para o pleno clímax de uma história, no sentido de causar satisfação no espectador. Aqui a morte deixa de ser um momento de tristeza, ou alívio, ou pavor, para se revelar um momento de beleza. Por ser um filme que compartilha da visão do assassino (um maníaco que gosta gravar a expressão de horror no rosto das mulheres no momento de sua morte) através de uma elegante técnica com a câmera subjetiva, Peeping Tom finalmente escancara a verdadeira satisfação do espectador quando decide assistir a um filme de terror: se aproximar da morte, mesmo que com medo.

Aqui se encaixa perfeitamente a expressão que já li algumas vezes sobre “um bom filme para quem gosta de diminuir a velocidade para ver acidentes de carro”.   A Tortura do Medo é essencialmente um trabalho sobre a curiosidade mórbida de todos perante a morte, e de como o ser humano carrega essa necessidade de se aventurar o mais próximo possível dessa experiência que nos aguarda cedo ou tarde. É, no fundo, o nosso maior medo, e justamente por isso a nossa maior curiosidade. Desde o costume de ligar o noticiário da tevê para acompanhar as intermináveis tragédias do dia, até o secreto misto de terror e êxtase diante de alguma notícia trágica, a aproximação da morte (dos outros, claro) exerce um fascínio indescritível e indefinível em nosso íntimo, e por isso filmes de terror costumam trazer tanto apelo para com o público, mesmo se tratando na maioria dos casos sobre histórias tão distantes de nossa realidade. Diferentemente de outros gêneros que também discutem a morte, como o drama ou mesmo as comédias, o terror tem como principal linha de conexão com o espectador o fato de tornar tudo isso muito atraente e sedutor.

Isso origina certo sentimento de culpa em cada um, que é de certa forma o grande sentimento latente nos filmes de terror, principalmente naqueles que se derivaram de Peeping Tom e Psicose – os slashers, em especial – que sempre associam o medo com a culpa, a descoberta de algo novo (como o sexo) com a emoção do desconhecido. Por isso há todo um teor sexual implícito nas mortes em A Tortura do Medo, como se a emoção de encarar o inevitável fim de nossa existência só pudesse ser equiparada com o momento do orgasmo sexual. E por encarar isso tão de perto através da câmera subjetiva de Powell (além dos inúmeros close-ups e planos fechados), nós deixamos a condição de espectadores, ou de companheiros dos mocinhos do filme, para assumir o posto de cúmplice do assassino, enxergar tudo sobre a ótica dele e, horrendamente, sentir a mesma emoção mórbida que ele sente ao consumar seus atos. A tática é tão eficiente que influenciou inúmeros filmes de terror posteriores, de Halloween - A Noite do Terror (Halloween, 1978), de John Carpenter, até Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981), de Brian De Palma.

Se foi costume do cinema durante toda sua existência materializar os medos de uma época, de uma geração, como quando os filmes de monstro – tais qual Godzilla (Gojira, 1954) – representavam a insegurança e paranoia do povo diante das ameaças nucleares que traumatizaram a humanidade pós-Segunda Guerra Mundial, foi com Michael Powell que esse costume foi aproveitado do avesso, ao materializar o medo para estimular a atração e a curiosidade do espectador. Não à toa foi considerado um filme maldito, que arruinou a carreira de Powell, e por anos permaneceu na penumbra, e só não caiu em total desconsideração por conta de cineastas como Martin Scorsese, que fez questão de divulgá-lo novamente anos mais tarde.

Mais do que colocar uma câmera subjetiva ao nosso dispor para a identificação com as vontades excêntricas de nosso antagonista, Powell ainda nos familiariza com seus traumas de infância e nos envolve em um laço de afeição com o personagem que simplesmente torna impossível qualquer tentativa de distanciamento dele ou de julgamento dos seus atos. Aos poucos isso nos inteira da realidade de Mark (Karlheinz Böhm), nos funde à atmosfera do filme, ao ponto de esquecermos da nossa condição de espectador (ou, pelo contrário, nos lembrando o tempo todo que estamos lá, e que estamos gostando de tudo aquilo), e por fim questiona essa relação entre imagem e receptor, tal qual Janela Indiscreta havia feito anos antes. Por meio de suas imagens que parecem nunca sair da memória, A Tortura do Medo passeia pelo lado mais obscuro do ser humano e o traz à tona sem temor das conseqüências, e ao término da sessão voltamos à nossa realidade sem guardar a noção do fim daquela história, e percebemos que o cinema também pode ser uma forma cruel e fascinante de ensaio para a morte. 

Atualização em 02.08.2014

Foram precisos anos para que A Tortura do Medo ganhasse o reconhecimento merecido. Amaldiçoado na época de seu lançamento, o filme demorou a receber o status de hoje, sendo reconhecido agora como tão importante e influente quanto seu contemporâneo Psicose. Se não fosse por Martin Scorsese, a obra provavelmente demoraria mais ainda para ganhar a atenção da crítica, e hoje só podemos agradecer por esse esforço do cineasta, que o considera, junto com (idem, 1963), de Federico Fellini, o filme que diz tudo o que pode ser dito sobre a criação cinematográfica. 

Aqui no Brasil tivemos que esperar um pouco mais, mas a espera valeu a pena. A Versátil Home Vídeo lança neste mês a edição definitiva do filme, em bela restauração, que ainda inclui uma hora de extras e introdução de Martin Scorsese.  Uma oportunidade única de se apreciar a obra-prima de Michael Powell com a qualidade necessária e merecida.

Comentários (9)

Francisco Bandeira | quarta-feira, 11 de Setembro de 2013 - 14:19

Uma pena, pq o Michael Powell deu ao cinema obras como: Sapatinhos Vermelhos, Coronel Blimp - Vida e Morte, Narciso Negro, Ladrão de Bagdá, Nas Sombras da Noite... Mas sem dúvida, uma de suas obras mais marcantes é A Tortura do Medo. Filmaço!

Caio Henrique | segunda-feira, 11 de Agosto de 2014 - 10:53

Brilhante. O que seria de nós se não fossem o Scorsese e os navegantes da baía pirata...
Um fato curioso é a diferença deste filme para o restante da filmografia do cara. Não vi, ainda, nenhum de seus outros filmes, mas a priori tratam de temas bem diferentes...O negócio é assistir mermo.

Ricardo Amaral Guedes | segunda-feira, 11 de Agosto de 2014 - 19:52

Off: Vendo o comentário do Gustavo me fez lembrar que quando encarei 8½ pela primeira vez, achei tão chato que precisei assistir parcelado e ainda assim quase cochilei. Uns três anos depois, revi, e desde então o filme não saiu do meu TOP 10. 😉

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