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Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas

(Loong Boonmee Raleuk Chat, 2010)
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um cinema que não cansa de nos deslumbrar.

9,0

A curiosidade em torno de Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee Raleuk Chat, 2010) tem sido alimentada desde o  recebimento da Palma de Ouro no último festival de Cannes, através do júri presidido por Tim Burton. Por mais que seus cinemas sejam radicalmente opostos, Burton parece ter encontrado no tailandês Apichatpong Weerasethakul um equivalente oriental para algumas de suas obsessões como autor de um cinema de fantasia: numa das cenas iniciais de Uncle Boonmee, a família estabelece uma conversa trivial em torno de uma mesa de refeições enquanto uma das cadeiras é ocupada pelo monstro da floresta reintegrado aos seus (para não falar do fantasma da primeira esposa também por ali), como se esse fosse o gesto mais natural do mundo. Não é preciso se esforçar muito para lembrar de títulos como Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990) ─ que contém uma cena bastante parecida ─ bem como de outros filmes do cineasta norte-americano em que personagens excêntricos convivem com pessoas comuns, geralmente num cenário contemporâneo mesclado com elementos sobrenaturais. As semelhanças, contudo, terminam por ai.

Uncle Boonmee é uma sequência há muito aguardada e ao mesmo tempo uma continuação lógica de todos os filmes do tailandês. Ao longo de toda a década anterior o cineasta vem colecionando elogios da crítica internacional (especialmente a francesa), chegando agora a absorção de sua individualidade autoral por um público maior em virtude desse novo filme, que parece um ponto de chegada por ser um acumulo das experiências dos seus trabalhos anteriores. Uncle Boonmee, entretanto, também pode ser encarado quem sabe como um novo ponto de partida em sua obra, não apenas por representar uma maravilhosa porta de entrada para quem nunca viu nada do seu diretor, mas também por ser a consagração de um estilo, o resultado da exploração profunda de um universo temático. O filme carrega consigo uma aura de fim de ciclo, uma grandiosidade desejosa de abranger o máximo de tudo o que cineasta vem trabalhando nesses anos, restando então a pergunta: o que fazer após a perfeição atingida por Boonmee dentro da obra de Apitchapong? O que podemos ter certeza diante de sua filmografia é de que o tailandês não é um desses fenômenos exóticos de sucesso meteórico que fazem estilo e jogam poeira nos olhos do público, para depois desaparecerem sem deixar rastros. Que ninguém duvide: Apichatpong Weerasethakul surgiu para entrar definitivamente na história do cinema. 

Tio Boonmee, o personagem-título, é um velho senhor que está definhando, e essa condição inscreve o filme na linha das grandes obras sobre a velhice e o fim da vida, de uma jornada final rumo à morte. O filme abre com uma cena em pleno crepúsculo, nem dia nem noite, como a sintetizar essa força crepuscular que é o longa: um boi-touro amarrado em uma árvore se debate tentando se soltar e foge percorrendo um caminho floresta adentro, atraído por uma circunstância que desconhecemos e guiando nosso olhar até o surgimento da primeira das muitas aparições do filme. É o filho desaparecido de Boonmee, que ressurge como uma das criaturas da floresta, e se dirige à sua antiga família para se reintegrar a ela. Em Uncle Boonmee, estamos diante de um mundo em que se transita da realidade física do homem para o espiritual.

O filme é sobre os últimos dias de Boonmee em sua fazenda em atividades simples e rurais e em contato com os vivos e mortos que lhe restou de família, em meio à presença contínua do fantástico, que precedem à passagem que desemboca no longo clímax em que os personagens entram floresta adentro e depois descem pelas pedras, penetrando numa caverna ancestral. Vastas florestas costumam ser um cenário de puro gozo visual no cinema, mas também são o espaço por excelência do filme de horror. A exuberância e o realismo mágico do tailandês impõem o fantástico com naturalidade em meio a paisagens e florestas como paraísos perdidos e reencontrados e habitat de personagens comuns, monstros, fantasmas e até uma princesa que se entrega a um peixe divino. A magia se entranha quase que por imposição e com grande simplicidade. A viagem pela floresta até a gruta é quase como um retorno ao ventre (podemos comparar essa demorada sequência em relação ao filme com a da espaçonave percorrendo um cenário exuberante na jornada a Júpiter no clímax de 2001: Uma Odisséia no Espaço [2001: A Space Odyssey, 1968], em que o seu protagonista também chega numa espécie de cripta em que morre e renasce), porém o filme de Apichatpong não é só uma história de passagem da vida à morte (e ressurgimento), mas igualmente uma fábula sobre a necessidade de ter contato a um mundo fantástico para enriquecer nosso mundo cotidiano.

Uncle Boonmee se configura em torno dessa viagem espiritual, enquanto adquire uma pregnância ainda maior no estilo visual e narrativo do cineasta e em sua composição estética, causando estranhamento à mesma proporção em que se torna uma obra auto-reflexiva sem dissolver o interesse do espectador. A mistura entre realidade e fábula é instalada de maneira extremamente confortável na mente do público, no intuito de não permitir uma separação entre elas, coexistindo ambas em uma linha dramática que move a narrativa como um todo, num estado de suspensão e entrega irrestrita ao fantasioso mesclado ao real. O tailandês concretiza uma experiência que, em termos visuais e de conteúdo, provoca um choque estético ainda maior do que o experimentado nos seus filmes anteriores, chegando perto da auto-superação. A imaginação sempre foi um terreno privilegiado para Apitchapong, e o que faz com que a estética do seu cinema ganhe vida é a energia que devota à criação dos mundos representados em seus filmes, uma vez que o cinema ao quais seus filmes se referem é o dele próprio, um cinema que nem agora ou antes existiu a não ser em seus próprios filmes, realizando aqui talvez a melhor síntese da sua crença nesse seu cinema tão particular.

Da mesma forma que o diretor avança em relação aos elementos fundamentais do seu cinema, ele também opera uma curiosa inversão em sua obra, na qual em alguns trabalhos anteriores os personagens abandonavam a cidade no decorrer dos filmes para se embrenharem no paraíso e inferno verdes da floresta. Em Tio Boonmee, ao contrário, o filme se encerra na cidade, em torno de um quarto de hotel e em uma reunião animada num bar, provavelmente fechando todo um ciclo do cinema de Apitchapong ─ e quem sabe dando origem a um outro. O que não resta dúvida é que o cinema de Apichatpong Weerasethakul é uma arte que não cansa de nos deslumbrar.

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