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Críticas

Cineplayers

A despedida e o mais autêntico retrato do Rei do Pop.

9,0

Digam que é oportunismo. Acusem-no de filme caça-níquel. Estudiosos e intelectualóides, que apontem e classifiquem: produto da sociedade do espetáculo, da tal “mídia”.  Pois que o chamem de derivado da curiosidade mórbida das pessoas em ver os últimos momentos da vida de uma celebridade. Isso e muito mais pode vir à tona, mas tenha certeza que são somente bobagens.  O que importa é que This is It é, acima de tudo, um trabalho cinematográfico primoroso, digno e honesto, que sem rodeios vai direto ao ponto, no território onde desenvolve todo o seu discurso: exibe os ensaios do que seria a última turnê de Michael Jackson.

Poderia ser o horror, evidentemente. Por se tratar de um projeto póstumo de um artista pop de fama universal, se tivesse caído em mãos erradas, tinha tudo para ser de um mau gosto tremendo, apelativo, melodramático, demagogo, fazendo uso de uma linguagem que clama pela emoção do espectador, pré-fabricando sentimentos. Exemplos de recursos desse tipo de abordagem, que ainda bem passam longe de This is It, são muitos: auto-indulgência, imagens de arquivo da carreira, retrospectiva da vida, flashbacks, imagens em câmera lenta, depoimentos de amigos e familiares chorosos, fãs inconsoláveis em vigília, trilha orquestrada melosa, desesperados clamando etc. etc. Porém nada disso, surpreendentemente, está presente. O que é muito positivo, uma vez que o filme torna-se uma finalidade em si, e não um meio para conquistar fãs, aumentar as vendas, e toda a sorte de retórica publicitária.

Partindo da exibição dos ensaios, em uma pegada documental, o espectador presencia o filme com um distanciamento quase que godardiano:  temos plena consciência o tempo todo de que estamos numa sala de cinema, assistindo a um ensaio (e não um show acabado), e que nada daquilo se concretizou – afinal, o final todos nós sabemos qual é. E é com esse distanciamento emocional que podemos apreciar o filme e a presença de Michael Jackson de forma racional, percebendo as nuances de seu comportamento, sua maneira de conceber a arte, sua mente que funcionava a mil por hora tentando unir imagem, som e movimento, em seu modo totalmente único de visualizar o mundo. Percebendo isso na tela, todo o empenho e perfeccionismo de MJ, é que todos se emocionam genuinamente.

O que há no filme é o palco, o ensaio, o artista multitalentoso e regente Michael Jackson – ele próprio chegou a dizer que só existia de fato no palco, e era lá que queria sempre estar. Estão lá os bastidores e a preparação do novo show, o trabalho em equipe, a gênese de uma nova proposta estética para o universo pop, algo que Michael fez a cada novo passo em sua carreira, em cada música, a cada novo lançamento. O foco está em exibir um Michael Jackson distante da figura debilitada, infantil e manipulável, ou mesmo de celebridade inacessível. Mas de um legítimo maestro, o manda-chuva, gênio criativo, um profissional absolutamente perfeccionista, que não titubeia em momento algum, seguro de si sem jamais hesitar em chamar a atenção de músicos e equipe técnica, dando suas broncas severas (educadas, de qualquer modo) e exigindo o melhor. Aparece usando termos técnicos, e pedindo coisas tais como a “síncope” correta, o andamento fiel a gravação, a interpretação musical, porém constantemente preocupado com que todos apareçam no palco e façam o seu show. “Somos uma família”, diz.

O filme tem sua sequência e ritmo estabelecidos tal qual seria a ordem das músicas nos shows. Para cada canção, como já era de praxe em suas turnês antigas, um novo universo, um novo mundo repleto de signos particulares, preenche a cenografia de palco a cada novo tema. Para “Beat it”, a grua leva MJ para fora do palco, acima e próximo ao público. Para “Jam”, artistas entram no palco pelo solo, através de um sistema de impulsão. Para “Earth Song”, imagens do mundo sendo destruído. Para “Thriller”, um novo videoclipe, com uma nova roupagem computadorizada, sendo exibido em 3D ao fundo.

Há uma clara preocupação em tornar o espetáculo o mais ligado ao momento contemporâneo, e para tanto muitas das músicas são apresentadas em mash-up, que é simplesmente a junção de uma ou mais canções em uma só – o recente álbum “Love”, dos Beatles, é um exemplo. O público dos shows seria apresentado a novas versões, como “Wanna Be Startin’ Something” junto com “Another Part of Me”; “They Don’t Care About Us” com “Why You Wanna Trip On Me”; e muito mais, como “The Way You Make Me Feel” misturada com “Heartbreak Hotel” (aliás, o palco foi caracterizado para esta canção lembrando a cenografia do show de retorno de Elvis Presley aos palcos em 1968, o lendário Elvis '68 Comeback Special).

Mas o ponto alto seria, sem dúvida, e em especial para os fãs de cinema, o da música “Smooth Criminal”. O clipe original da canção, de 1988, era uma espécie de refilmagem da sequência final do clássico musical A Roda da Fortuna, de 1953, de Vincente Minnelli – todo aquele clima de cabaré, iluminação de cinema noir, homens em ternos justos, femmes fatales etc. Para este show, a idéia de homenagem ao cinema foi mantida, porém indo muito além, com o auxílio de muita criatividade e tecnologia de primeiríssima. Michael Jackson aparece nas imagens (que seriam projetadas) contracenando dentro do filme Gilda, de 1946, com a musa Rita Hayworth, em papel que dá título ao filme. Como se já não fosse suficientemente genial, Michael, em persona gangster, aparece trocando tiros de metralhadora com ninguém menos que a maior estrela do cinema clássico americano, Humphrey Bogart. As imagens utilizadas são do noir Relíquia Macabra, de 1941. Talvez o que se possa observar no sentido mais depreciativo é que Michael claramente não dispunha mais do mesmo vigor físico dos velhos tempos, e que encontrava dificuldades em cantar o tempo todo, porém isso é algo que conquista por seu empenho, em não recorrer a playbacks.

This is It soma-se com muita propriedade a não tão extensa séries de filmes da história do cinema que tem como mote os bastidores de turnê. Os anos 60, por razões óbvias, teve o fortalecimento do gênero musical “por detrás dos palcos” com Don’t Look Back, de Bob Dylan, dirigido pelo artista de vanguarda D. A. Pennebaker (dali sairia o clipe de "Subterranean Homesick Blues"); Charlie is my Darling, bastidores de uma das primeiras turnês dos Rolling Stones (exibe Mick Jagger caindo de bêbado cantarolando o riff de “I Feel Fine”, dos Beatles) e, é claro, Os Reis Do Iê-Iê-Iê, dos Beatles, um mockumentary (mistura de ficção e documentário). Nos anos 70, o mais importante foi o The Song Remains the Same, do Led Zeppelin. Nos anos 80, fez escola o Rattle and Hum, do U2. Anos 90, o mais emblemático sem dúvida foi o Live! Tonight! Sould Out!, do Nirvana. Bons exemplos recentes são o Meeting People is Easy, do Radiohead e Lord Don’t Slow me Down, do Oasis.

Mas nada, até pelas circunstâncias, pode ser comparado com This is It: é simplesmente um filme feito com imagens de bastidores de uma turnê que sequer aconteceu, e que seria a última despedida de uma pessoa que foi o artista mais popular sobre a Terra, o criador do videoclipe moderno (pós-80), e que simplesmente morreu horas depois daquelas imagens – e sabemos disso o tempo todo. Não há como evitar a melancolia, em saber que todo aquele empenho sobrehumano foi em vão no dia em que foi encontrado morte em 25 de junho de 2009. This is It é nada mais que seu justo testamento.

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