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Tempo que Resta, O

(O Tempo que Resta, 2019)
7,3
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Críticas

Cineplayers

Trocar a dor pela esperança

8,0

No lugar do desespero, o amor. No lugar do medo, o sonho. No lugar do pânico, a vida. Ivete e Osvalinda não se conhecem, mas vivem ameaçadas pelo mesmo terrorismo que ceifa vidas de povos agrícolas que vendem uma visão de Brasil menos agrotóxica, mais autossustentável, menos dependentes do agronegócio, mais livres para plantar, colher e vender sua própria produção. Extrativistas por natureza, essas duas mulheres levam suas histórias com delicadeza, mas estão juradas de morte. No que talvez seja o longa-metragem mais urgente do Festival de Brasília 2019, Thais Borges rege à margem do horror que reside na expectativa do fim, uma elegia à vida.

A construção inteligente do foco narrativo em cima da subsistência que criaram em suas relações profissionais e humanas, sempre regando com muito afeto os contatos que mantêm com seus próximos, faz com que Thais consiga extrair com muita sutileza a tragédia que habita as entrelinhas dessas histórias. Cada momento compartilhado pela câmera dessas duas mulheres, que vivem uma humilde vida de pequenas agricultoras junto com seus companheiros e famílias, é o suficiente pra percebermos o quanto cada uma tem a perder caso o mal se faça presente. Reverbalizá-lo a todo instante não instituiria potência narrativa, pelo contrário: empobreceria o enfoque humano e diário dado a duas sobreviventes.

A colheita do açaí, a plantação de novas mudas nas ribeiras dos rios, a cana de açúcar espremida, tudo isso em meio à intimidade familiar que Thais flagra vez por outra: mãos que se tocam, um raro beijo, olhares cúmplices, sonhos divididos em uma rede. Cenas que fazem uma coleção de momentos frugais na vida de duas famílias que só queriam viver do próprio sustento, mas que são sistematicamente ameaçadas (e eventualmente executadas, tantas como elas já foram) por interesses maiores, poderes mais efetivos, e que o atual governo corrobora em ações, transformando esses momentos flagrados pela produção como constantes momentos de calmaria em meio a uma tempestade que não se afasta.

Grandes momentos são captados por Thais através das imagens do fotógrafo cubano Mayangdi Inzaulgarat, como a extração do mel de abelhas cheio de poesia, o boné apertado causado pelo medo de perder o marido, e as lágrimas de Seu Zezinho, que também vive em constante tensão pelas ameaças, vai compondo um mosaico potente de sensações e interrupções emocionais no processo de imersão filmica, pois tudo aquilo que está sendo exibido em tela é retrato de uma história que está em vias de ser exterminada. Ainda que evite o confronto direto dos grandes discursos de ordem, nenhuma cena de impacto político teria mais força do que observar todo aquele arsenal de pureza de intenções e liberdade de viver sob a constante iminência da finitude.

Talvez não exista ato político maior que ousar desafiar a morte, e foi isso que Thais Borges quis guardar dos seus personagens muito reais e muito carentes de voz. Ao perceber que essa voz calada ela exalava dor mas também esperança, a diretora optou por reforçar sua obstinação com seu entorno, suas famílias, suas possíveis perdas, do que encerrá-las no pavor. Esse sentimento o filme lega ao espectador que, ciente inclusive da apavorante imagem final no meio dos créditos, tem consciência do tanto que se esvai a cada nova vida perdida na ânsia de construir um país com mais capacidade aos menores. Entre Ivete e Osvalinda vai existir sempre um mesmo ideal a perseguir, que Thais filma o lado mais cotidiano sem perder a deixa para o terror iminente, que corre à espreita. 

Crítica da cobertura do 52º Festival de Brasília

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