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Críticas

Cineplayers

À beira do vulcão.

8,5
O cinema é, na maioria das vezes, encarado como um caminho para se fugir da realidade, um meio de se desligar por alguns momentos do que nos atormenta no mundo lá fora. É confortável assistir um filme e esquecer a realidade, protegido pela ilusão, pelo escuro da sala de projeção. Por isso a experiência de ver Ingrid Bergman em um crescente de sofrimento, sufocação e agonia em Stromboli (idem, 1950), acaba sendo uma das experiências mais estarrecedoras e imprevisíveis que o cinema pode proporcionar. Roberto Rossellini, o diretor, não fazia do cinema um simples instrumento de fuga, mas sim um confronto doloroso com a realidade nua e crua. A imagem, para ele, era uma forma de comunicação universal de alcance ilimitado e por meio dela era possível descrever com precisão a dor do viver e ao mesmo tempo oferecer uma redenção. 

Nome mais importante do neorrealismo italiano, Rossellini trabalhou em diversos filmes com sua musa e esposa, Ingrid Bergman, mas foi em Stromboli que a parceria dos dois alcançou um nível de fisicalidade e corporalidade que extrapolava os limites da tela. O filme abria sua poderosa trilogia da solidão, também composta por Europa 51 (idem, 1952) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954), que inaugurava uma fase em que o diretor deixava um pouco de lado o foco da observação social coletiva da Itália durante e pós-guerra e partia para um cinema mais intimista, espiritual e psicológico sobre os indivíduos que compunham essa Europa – pessoas fragmentadas e solitárias vagando à esmo por paisagens que refletiam sua decadente condição pessoal. Essa opção de variar o cinema que já tinha consolidado o seu nome e partir para algo mais particular foi de grande contribuição para o cinema moderno e de forte influência para cineastas como Michelangelo Antonioni. 

Não por acaso, nos três filmes Bergman interpreta uma mulher de muita classe transitando em território estrangeiro e atormentada pelo ambiente que a rodeia, que de alguma forma evoca fantasmas de seu passado. Em Stromboli, essa condição se reflete na própria atriz, que acabava de sair de Hollywood, onde era uma estrela e passou a ser julgada como uma destruidora de lares, após Rossellini abandonar sua primeira esposa (a atriz Anna Magnani) para ficar com ela. Lidando com um novo tipo de cinema, de poucos recursos, com atores não profissionais, em cenários áridos, sem dominar o dialeto local, sem a produção completa a que estava acostumada, Bergman teve muitas dificuldades de adaptação e ainda tinha sobre si a pressão da mídia que lhe aplicava julgamentos morais. Rossellini buscava autenticidade na história de Karin, uma mulher fina que acaba se casando por força das circunstâncias com um pescador simples e sendo obrigada a ir morar na vulcânica ilha de Stromboli em condições precárias, por isso não poupou Bergman de sofrer junto de sua personagem. 

O isolamento do local a obriga a vagar atrás de um sentido para o rumo que havia escolhido na vida. O vulcão, seu cheiro sulfúrico e sua ameaça latente de erupção ampliam o desespero de Karin. A pobreza material, a condição de entrega e imobilidade dos nativos, a moralidade com que ela é vista por eles, aos poucos a cercam e não lhe resta outra opção senão a de resistir para não ser engolida por aquele meio. Toda a dramaturgia da obra reside nesse contraste entre o interior e o exterior, entre os sentimentos cada vez mais angustiantes de Karin e a condição quase inóspita da ilha. Aos poucos, o diretor aproxima esses dois lados em reflexos que expõem a espiritualidade do local e a aridez do coração da mulher. Muito católico, era próprio dele tratar a figura feminina moderna como uma forma de corrupção para aquele povoado tradicional e religioso. Aos poucos ela é absorvida por aquele meio até se verter na sofredora figura feminina exaltada pela ideia cristã da mulher como ser de abnegação e sacrifício. 

Rossellini abriu mão de muito do que tinha estipulado em sua fase inicial do neorrealismo italiano a fim de se aprofundar nesse cinema mais intimista, sobre o individuo, e menos sobre a análise social coletiva. Dos inúmeros planos-sequência que eram tão próprios do movimento, ele partiu para mais cortes e mais close-ups, a fim de intensificar a sensação de sufocação e agonia crescente em Karin. A iluminação natural prevaleceu, só que desta vez usada em favor do rosto de Bergman, sempre absorvido pela escuridão das passagens noturnas, para na manhã seguinte se revelar mais abatido e consternado do que no dia interior, acompanhando assim o gradual desmoronamento físico e psicológico dela. 

Ver a estrela magna de Hollywood se livrar de qualquer vaidade para encarar de cara limpa, sem os artifícios farsescos da dramaturgia do cinema americano da época, um ambiente devastado, um realismo moderno e intimista, é uma experiência com poucos paralelos. A câmera de Rossellini mergulha em cada poro de Bergman, extrai a roupagem da personagem até encontrar a atriz por detrás, penetra em seus tormentos mais íntimos e pavimenta o caminho para sua via-crúcis até a beira do vulcão, onde a mulher finalmente se solta como a força da natureza que é, se livra de qualquer amarra e encara sozinha o destino que lhe aguarda. O cinema nem sempre é a fuga da realidade. 

Comentários (2)

Luís F. Beloto Cabral | domingo, 15 de Abril de 2018 - 17:24

Tenho muita vontade de ver esse. Bergman deve ser a atriz mais bela já filmada por uma câmera. Bela e elegante.

Luís F. Beloto Cabral | domingo, 15 de Abril de 2018 - 17:39

P.S.: Recapitulando: tem a Claudia Cardinale também. As duas dividem o pódio. Rsrsrs...

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