Imagine uma casa habitada: um lugar que compreende os movimentos das pessoas que o habitam e o modo como essa habitação se distribui espacialmente. Imagine, portanto, como essa casa é mobiliada e como seus habitantes interagem com os objetos, suas tarefas domésticas (lavar pratos, cortar o pão do café da manhã) e seus momentos de ócio. Muito logo, você se descobre imaginando uma comunidade. É esse o exercício que So Pretty (2019), filme exibido na mostra competitiva de longas-metragens do XII Janela Internacional de Cinema do Recife, faz conosco.
Se So Pretty nos apresenta essa domesticidade a partir de uma sensação de comunidade, não é de se surpreender que o filme ancore essa comunidade na conjuntura histórica e política dos EUA hoje. A diretora Jessie Jeffrey Dunn Rovinelli, que também atua no filme, cria esse mundo articulado a partir do amor, amizade e carinho entre pessoas trans e queer, mas nunca mostra esse mundo como estando separado do mundo que é previamente apresentado às personagens – a Nova York de 2018, num país presidido por Donald Trump.
Essa possibilidade de mundo inserida dentro de um outro mundo, de violência policial, de necessidade de lutar contra o fascismo, de uma urgência antirracista etc., impede que o filme caia dentro de uma utopia não pronunciada – de se imaginar, por exemplo, que as personagens habitam um mundo ideal, de poucos conflitos, como me parece acontecer em filmes como Corpo Elétrico (2017), também voltado para a construção de uma comunidade LGBT (uma sigla que eu hesitaria em usar para descrever a comunidade de So Pretty, que parece agenciar algo do não normativo da sexualidade e do gênero que está para além dessas letras). Mais do que isso, o mundo de So Pretty não se isola dentro desse suposto mundo maior, ele não está contido, ele se insere política e esteticamente na sua conjuntura – transformando o conjunto sensível da cidade ou do bairro em que essas personagens se movimentam, protestam, aparecem e agem.
Na materialidade fílmica, a diretora enfatiza essa transformação do mundo imprimindo ao que é filmado uma apuração de cor, textura e movimento. Logo, não é simplesmente que os personagens “mudem o mundo” por sua contraposição a uma normatividade de gênero, sexualidade e raça, mas que o filme cria a sua própria imagem desse mundo transformado. São frequentes os planos que simplesmente exibem pequenos objetos domésticos, belamente decorados; ou outros planos em que o cabelo de alguma personagem encosta de certo modo no lençol da cama, e o filme consegue tornar sensível o modo como um roça no outro.
Isso aparece de modo muito evidente nas várias sequências do filme no parque em que as personagens se revezam para narrar a própria história. Há uma cor verde que compõe de maneira muito acentuada esse momento da narração, mas, ao mesmo tempo, não é um verde simplesmente bucólico como um desejo de fuga da cidade e retorno à natureza, e sim um verde muito enfatizado pelo artifício audiovisual tanto na encenação (em que personagens contam a história ao modo de uma leitura dirigida) quanto na composição (que, por exemplo, sempre revela a ponte do Brooklyn ao fundo do quadro).
O imenso potencial político e estético de So Pretty é colocar essa reconfiguração do mundo a partir do artifício, de uma beleza que não é da ordem do sublime, mas de algo que é, como sugere o título do filme, “tão lindo”, como objetos decorativos e adornos que se desvinculam de uma ideia da beleza natural, mas que se afirmam encantadores e graciosos (uma afirmação estética e política). É este o mundo criado e incorporado pelas personagens. Um mundo que não exclui a disputa política, mas que a reorganiza afetivamente. E é mesmo tão lindo...
Crítica da cobertura do XII Janela Internacional de Cinema do Recife
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário