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Críticas

Cineplayers

À sombra da rapariga na janela.

8,5

A partir de um texto de Eça de Queirós, o diretor Manoel de Oliveira reduz a arte do seu cinema ao essencial de apenas sessenta minutos, num filme breve como um sonho ou uma nota de sax. E é quase como um sonho que Singularidades de uma Rapariga Loura se apresenta, ainda que sempre na mais discreta serenidade. Um conto sobre desejo e frustração, com o protagonista Macário (Ricardo Trêpa) dividido entre o seu emprego garantido e a fatal visão da rapariga loura (Luísa Vilaça, interpretada por Catarina Wallenstein) que almeja desde o dia em que a conhece, sendo que com os dois (emprego e mulher) não pode ficar.

No entanto, existe a necessidade de continuar com o trabalho para possuir a rapariga desejada, o que não se apresenta como possível, porque o tio que o abriga e o emprega no escritório de sua casa se opõe a essa união, recusando-se a ajudar o rapaz se ele insistir em continuar querendo a moça. De imediato, surge o movimento contrário que dilacera o protagonista: entre interesses financeiros e vontade de estabilidade, Macário quer o emprego e a acolhida no lar do seu tio, capaz de garantir um futuro auspicioso e tranqüilo. Porém, já não consegue mais viver sem pensar na criatura da janela do prédio vizinho, e cuja relação com ela manifesta-se, ainda assim, singelamente nos sorrisos, nos encontros, em todos os meios-gestos resguardados por uma cortina que deixa transparecer e ao mesmo tempo esconde e revela tudo e nada, sendo capaz de alterar com facilidade a cabeça do homem que se apaixona pela rapariga loura.

É um pouco como uma espécie de Amantes (Two Lovers, 2008) europeu, com o contador Macário bi-partido não entre duas mulheres, mas dividido entre a imagem de uma que o fascina na janela diante do seu quarto, e a estabilidade de uma vida acomodada, segura e modesta (porém medíocre, sob os cuidados do tio). Entre esses dois pólos que o personagem de Ricardo Trêpa em Singularidades parece estar perdido, ainda que firmemente decidido na idéia de ter Luiza como quem persegue uma imagem, movido por uma obsessão incontornável. Porque Macário se apaixona mesmo é por uma imagem, a da garota com o leque nas mãos emoldurada pelo quadro da janela da casa em frente a sua. Ele pode vê-la por essa janela e usa estratégias de aproximação. É também uma relação de desencontros amorosos fundada sobre a lógica do capital. Sem dinheiro e passando a morar em quartos simples de pensões baratas, dizimando rapidamente suas parcas economias, Macário foi ao inferno e voltou numa viagem até a África para um trabalho que lhe renderia um ótimo lucro, porém em mais de uma ocasião será vítima das trapaças do destino e das armadilhas da vida.

Oliveira se arma da estética em todos os sentidos para criar um todo absolutamente siderante e transportar o público que o assiste para dentro de sua narrativa. Cada plano de Singularidades carrega um peso inacreditável, no tratamento dado à imagem estática, com os personagens frequentemente confinados pela simetria dos enquadramentos numa Lisboa suspensa pelo tempo, onde o vestuário, o cenário e hábitos de épocas mais remotas coexistem com a modernidade do mundo contemporâneo. E a imagem da jovem rapariga de cabelos louros que se abana com um leque em sua janela é uma visão que justifica toda a loucura e perdição do personagem masculino, e a paixão por ela é tão instantânea como inevitável, e para ele arrebatadora. Penso que outros filmes (não todos, obviamente) também deveriam ter o espaço de pouco mais de uma hora de duração, com toda a concisão absoluta e notável riqueza de economia narrativa de um filme tão belo como Singularidades de uma Rapariga Loura.

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