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Críticas

Cineplayers

Filme menor e sensível de Mike Leigh dá uma lição de vida nos mal-humorados. Sally Hawkins tem uma ótima personagem aqui.

8,0

Retornando como realizador após o excepcional O Segredo de Vera Drake (2004), Mike Leigh ratifica sua posição como um dos mais competentes britânicos por trás das câmeras em atuação com este seu novo trabalho, Simplesmente Feliz. E novamente conta com a atriz Sally Hawkins em seu elenco, que parece estar virando uma espécie de xodó de Leigh, depois de atuar também com o diretor em Agora ou Nunca (2002) e no próprio Vera Drake. Apesar da atriz ter sido sumariamente esnobada pela Academia no Oscar 2009, e a única indicação a este filme nesse prêmio tenha sido para roteiro original, a obra, a atriz e o diretor vinham somando troféus valorosos durante os meses que precederam o seu lançamento no Brasil, como o Urso de Prata em Berlim e o Globo de Ouro para Hawkins, por exemplo.

Simplesmente Feliz é sobre Poppy, uma mulher ainda jovem que, com seu jeito simples e divertido, aparenta sempre estar feliz. Apesar de cercada por problemas do dia-a-dia – como os homens e as dificuldades de seu trabalho como professora primária – vive em seu apartamento com uma amiga que adora, e dessa forma vai levando a vida. Sempre com espírito positivista, cheia de energia, até mesmo o roubo de sua bicicleta não lhe deixa cabisbaixa, bem pelo contrário: ela vê o lado bom disso e sorri quando as pessoas geralmente ficariam irritadas ou chorariam. Poppy é, em suma, alguém em que muitos de nós poderíamos nos espelhar.

Sally Hawkins interpreta Poppy com uma naturalidade absurda. Ela é uma mulher comum em aparência (não especialmente bonita), gostos, desejos e sonhos. Seu excesso de felicidade não é daquele tipo irritante, pois de forma alguma ela é intrusiva às outras pessoas. Ela não força seu comportamento a ninguém, no máximo oferece apoio e bom humor. Seu caminho é sempre o mais simples, o mais óbvio. Dessa forma, ela acaba transformando a realidade ao seu redor. Até mesmo o carrancudo instrutor da autoescola (Scott, feito de forma tragicamente divertida por Eddie Marsan) tem sua vida virada do avesso ao se deparar com ela. Por maior que seja o esforço para  escapar da teia de felicidade dela, ele é capturado, tornando sua vida, nesse caso, mais miserável ainda – o choque de personalidades é grande demais, e o resultado é uma explosão física e emocional.

Há o tom típico de cinema independente no trabalho de Leigh, que nunca pôde contar com orçamentos generosos para suas produções. Em seu favor, está o fato do diretor possuir total controle sobre seu trabalho, algo de que certamente se orgulha. Simplesmente Feliz tem aura de cinema menor – é quase delicado, absolutamente sutil. Ao mesmo tempo, por trás de tanta simplicidade, há questionamentos profundos, de forma que o trabalho só faz adicionar à vida do espectador. Nas mãos de um diretor comercial, Simplesmente Feliz seria a típica comédia romântica com final previsível. Nas mãos de Leigh, o roteiro, de sua própria autoria (outra marca do diretor), ganha camadas extras. Há, sim, a previsibilidade, as piadas engraçadinhas, o romance óbvio, mas esses elementos nunca se tornam o objetivo final, apenas um meio para atingir algo maior.

Esse “algo maior” é o poder que o filme cria ao fazer o espectador questionar. Questionar se o mais simples não é o ideal. Manter a vida longe de complicações, manter-se feliz, mesmo quando as coisas não vão bem. Há algo de irônico nisso tudo, quase um deboche – afinal, seu comportamento parece alienígena, ninguém conseguiria viver verdadeiramente de forma positiva o tempo todo na vida real. Mas se é algo utópico reproduzirmos em nossas vidas o espírito de Poppy de forma ininterrupta, pelo menos a personagem tem o grandioso poder de fazer o espectador pensar em suas ações, seu modo de vida e suas atitudes. E reavaliar sempre é bom – é isso que o bom cinema, além de entreter, deveria fazer sempre. Leigh acerta em cheio porque seu filme faz as duas coisas de forma perfeitamente balanceada.

O título brasileiro, porém, pode dar uma ideia errada em relação à nossa protagonista. Sim, ela é feliz, ela é alegre, ela é simples. O tempo todo, praticamente. Como se somente houvesse qualidades positivas em sua pessoa. Mas ela também nunca arrisca demais. Para ela, o básico é o suficiente. Pode-se ser feliz assim? Acredita-se que sim. Mas o mundo não evolui com pessoas deste tipo; o mundo exige complexidade e até algumas características brutas dos seres humanos para que as coisas aconteçam. Poppy vai com a maré, sem preocupações exageradas com nada em particular (que é mais ou menos o significado do título original – Happy-Go-Lucky) e naturalmente influencia as pessoas ao seu redor. Mas há limites para isso, e com esse seu comportamento simples ela provavelmente nunca conseguiria que coisas extraordinárias acontecessem com ela.

Mas independentemente do que você pense sobre o modo de vida de Poppy, ela é a estrela, e acaba recebendo um carinho especial do roteiro – ao final, a impressão que temos é de que conhecemos o que se passa no coração da personagem. Mas há bons coadjuvantes também e, se eles não têm a atenção necessária para serem personagens marcantes, garantem o nível de curiosidade suficiente para fazer de Simplesmente Feliz uma obra para ser apreciada como entretenimento, além de ser sentida. Algo que o diretor Mike Leigh sempre pareceu fazer tão bem, e acaba de fazer novamente. O filme é mais do que recomendado para quem gostaria de experimentar uma boa dose de bom humor verdadeiro, sem ir na direção da obviedade das comédias de sempre.

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