Não apenas um filme, reflete todo o pensamento de uma geração.
Duas irmãs estão no exterior a caminho de casa. Elas talvez mantenham uma relação incestuosa lésbica. Uma delas é tradutora e se embebeda diariamente para tentar suportar as dores de uma doença maligna que a destrói por dentro. A outra irmã, mãe de um garoto, aproveita as tardes quentes do verão russo para visitar bordéis e satisfazer seus desejos neuróticos de dominação e submissão.
Para falar de O Silêncio, de Ingmar Bergman, derradeira parte de sua “Trilogia do Silêncio”, é bom voltar ao ano de 1964, quando os estudantes atearam fogo em Paris. Só durou duas semanas o qüiproquó, mas os reflexos, como todos sabemos, foram muitos e duradouros. Já teria valido a pena só por ter dado assunto a tantos ótimos filmes. Talvez outro ótimo reflexo foi ter impedido a premiação do Festival de Cannes daquele ano – é brincadeira.
O ano 1964 entraria para a história de qualquer forma, pois foi a o ano de Bande à Part (Jean-Luc Godard), Gertrud (Carl Dreyer), Marnie, Confissões de uma Ladra (Alfred Hitchcock), Uma Mulher Casada (Jean-Luc Godard), O Esporte Favorito dos Homens (Howard Hawks), Deserto Vermelho (Michelangelo Antonioni), A Terra do Sonho Distante (Elia Kazan), O Silêncio (olha ele aí!) e Para Não Falar de Todas Essas Mulheres (ambos de Ingmar Bergman), além de O Criado (Joseph Losey, para muitos, a sua obra-prima). Essa é, pela ordem, a lista dos dez melhores filmes do ano feita pela revista francesa Cahiers du Cinéma, então a maior referência cinematográfica mundial.
Mas havia muito mais: Os Guarda-Chuvas do Amor (Jacques Demy), Um só Pecado (François Truffaut), Caravana de Bravos (John Ford), Dr. Fantástico (Stanley Kubrick), Minha Bela Dama (George Cukor, que venceu o Oscar), Diário de uma Camareira (Luis Buñuel na França), o magnífico A Mulher de Areia (Hiroshi Teshigahara), Crepúsculo de uma Raça (John Ford) e até Os Reis do Iê-Iê-Iê (Richard Lester). E olha que só usei a Cahiers de fonte, tem muito mais.
Pois O Silêncio foi eleito o oitavo melhor filme do ano com concorrência pesada, inclusive o diretor, pois o próprio Bergman entrou no duro páreo com outro de seus filmes, Para Não Falar de Todas Essas Mulheres. O cineasta sueco estava no auge do prestígio, já havia ganhado Cannes e o Oscar (esse, duas vezes), gozava de fama internacional (os cinéfilos brasileiros devoravam seus filmes com fervor quase religioso, um paradoxo) e garantido seu nome na história.
Bergman desenvolveria tema semelhante, do embate entre mulheres que psicologicamente se imiscuem, com insuperável maestria no seu filme seguinte, Persona (66), ou mesmo numa de suas obras-primas, Gritos e Sussuros (73). Bergman repetia os temas, mas são as variações deles que realmente importam. Em O Silêncio, é impossível saber qual das irmãs é projeção da outra, qual seria a verdadeira ou quem é o ego liberado da primeira, se a reprimida intelectual ou a liberada fútil. No duelo verbal, confrontadas, ambas se aniquilam. Cada uma quer ser uma parte da outra, têm inveja, mas não suportam as limitações.
Em resumo, falar de O Silêncio é, portanto, falar de um tempo mítico em que o cinema não era uma diversão, mas a legítima representação artística do que pensava, ansiava e esperava toda uma geração. O ideal marxista de 64 provou-se inviável e foi suplantado pela democracia capitalista. Os filmes, porém, resistiram ao tempo. O Silêncio tem os excessos da época e não supera as duas primeiras partes da “Trilogia do Silêncio”: Através de um Espelho e Luz de Inverno. No entanto, não há espaço hoje para esse tipo de filme; não são mais feitos. Eles são, como o ideário daquela época, apenas utopia.
O silêncio, de 1964?
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