Sem passado e sem futuro, Hannibal Lecter emerge como o ícone de um mal incompreensível.
Vivemos tempos confusos. A ilusão de que o progresso técnico levaria ao desenvolvimento humano enfraqueceu resistências contra a decadência moral que empurra a civilização ocidental para um poço sem fundo. Desamor, morte, tortura, falsidades, misérias, execuções, manipulações foram tão explorados e banalizados pela indústria cultural que cada vez mais provocam menor comoção. Se transitamos por uma época assombrada pelo mal absoluto, ainda é tempo de reconhecê-lo e olhar em seus olhos.
Não é preciso lembrar a nenhum cinéfilo que Hannibal Lecter é um dos personagens mais marcantes de todos os tempos. Seu surgimento nas telas, ainda hoje, causa perplexidade na mesma medida em que gera o desconfortável sentimento de admiração por algo grotesco.
Inspirado em casos reais de psicopatia, como os de Albert Fish e Ed Gein, Lecter apareceu na literatura, pela primeira vez, em 1981, no romance “Dragão Vermelho”, de Tom Harris. O escritor, posteriormente, retomou o personagem em “O Silêncio dos Inocentes”(1988), Hannibal (1999) e Hannibal Rising (2006). No cinema, porém, “O Silêncio dos Inocentes”, de Jonathan Demme, foi o primeiro da série a vir à luz, em 1991. O filme tornou-se o grande vencedor do Oscar do ano seguinte, sendo premiado nas principais categorias: melhor filme, diretor, ator, atriz e roteiro adaptado. Foi indicado também, nas categorias edição e som.
A história, filmada por Demme, enfoca a jovem Clarice Starling (Jodie Foster), uma promissora estudante da Academia do FBI que busca seu espaço em um ambiente dominado por homens. Sua grande oportunidade acontece quando, em meios às investigações de uma série de assassinatos, ela é escalada para visitar um outro serial killer, o próprio Hannibal Lecter.
Preso em um manicômio de segurança máxima, Dr. Lecter é um psiquiatra de origens obscuras, extremamente competente, mas temido por sua aguda inteligência e capacidade de manipulação, tanto quanto por sua principal característica: o hábito de degustar pedaços dos corpos de suas vítimas. Lecter, porém, também pode se passar por um gentleman, exibir a mais perfeita educação e gentileza enquanto, como um animal, prepara o bote, conduzindo a presa, imperceptivelmente, ao local onde será finalmente acuada.
Starling é consciente do perigo que Lecter representa, mas nem por isso deixa de estar em risco. O primeiro encontro dos personagens é claustrofóbico. Ela precisa percorrer um longo corredor, que dá para a cela de outros presos, para chegar às acomodações de Lecter. Demme consegue colocar o espectador no corredor, na pele de Starling. A tensão dela passa a ser a nossa e o desconcertante é o não compreender a natureza do que se está a temer.
Neste ponto, os detalhes assumem importância superlativa para a construção de todo o clima. Os alertas sobre o perigo que Lecter representa, os cuidados com que ele é guardado, o isolamento ao qual é submetido em sua cela – vidro blindado, objetos trocados sem qualquer possibilidade de contato humano direto, distância mínima a ser observada pelos visitantes, fluxo de comunicações controlado –, tudo contribui para a construção da tensão na dose exata, sem exageros ou superficialidades.
Anthony Hopkins – que então se consagra definitivamente – recebe Starling como Hannibal e faz de sua interpretação um marco memorável do cinema. A expressão vazia abriga o olhar fixo, a camuflar as intenções de uma mente brilhante. Hannibal passa a brincar de gato e rato com a agente do FBI, através de um diálogo cheio de meias palavras e duplas intenções. É esse ataque e defesa, com dois atacante e dois defensores, que vira o jogo e faz de Lecter o centro das admirações enquanto mantém a empatia entre a perplexa Starling e o chocado espectador. Aqui, perplexidade e choque assumem dimensões diferenciadas. Trata-se de sentimentos que caracterizam momentos de descoberta, o não saber bem o que fazer ou o que pensar de algo novo e até então inconcebível. Lecter não se encaixa bem no nosso mundo mental organizado, com seus códigos a indicar o que é certo ou errado. Ele é prenúncio de caos, ou pelo menos de necessidade de formação de uma nova organização mental, sob bases ampliadas. Esse é o tom de todo o filme, o de reorganização frente à descobertas, e, ao conseguir sustentá-lo, Demme fez nascer a que é considerada, por muitos, como a obra mais importante do cinema dos anos 90.
A situação de Lecter não é diferente da situação de um rato de laboratório: observado, testado e completamente à mercê de um cientista que parece não tratá-lo com respeito ou qualquer consideração, mas sim com possessividade. Chega-se a ter pena do “pobre canibal” e a desejar que ele tenha um destino diferente. Com inocência ingênua o espectador tende a acreditar que Lecter talvez possa ser recuperado e tornar-se um cidadão de bem. Assim, seria possível admirá-lo sem o incômodo sentimento de culpa.
Claro que não podemos esquecer que a visita de Starling tem um propósito último: conseguir a ajuda do Dr. Lecter para fazer o perfil psicológico do outro psicopata, Buffallo Bill (Ted Levine), que está a solta, fazendo novas vítimas. Bill ataca garotas e lhes tira a pele. É por meio da “troca de favores” que Starling consegue a colaboração do psiquiatra canibal. Lecter passa a fornecer pequenas pistas em troca da possibilidade de melhores condições de vida, como acesso a livros, pequenos passeios, melhor comida.
Difícil dizer se Starling se vê comovida ou não pela situação de Lecter. Não há sentimentalismos explícitos. Inegável que as circunstâncias das vidas de ambos os aproxima em algum nível. Starling conta fatos de sua vida (a morte do pai – um policial –, sua infância); Lecter, em companhia dela, espanta um pouco da própria solidão e ganha algo no qual pensar. Para Starling, a almejada carreira do FBI é uma forma de silenciar seus fantasmas interiores. Lecter, bem a compreende, mesmo sem poder mais silenciar os seus, já que rendeu-se a eles em algum momento.
Com o seqüestro da filha de uma senadora, as investigações sobre Buffallo Bill ganham maiores atenções. Refletindo sobre as pistas indicadas por Lecter, Starling se concentra nas vítimas do serial killer a ser capturado e na possível significação que elas assumiriam para ele, assim como no sentido que possam ter os casulos de borboletas tropicais encontradas nos corpos das garotas mortas. Aproveitando-se da situação, Lecter oferece ajuda especial à senadora. Ao conseguir escapar a todo o controle, ataca violentamente dois policiais e foge, não sem antes deixar claro o motivo de tanto temor.
As cenas de canibalismo que envolvem a fuga de Lecter foram dosadas com tons de animalidade e estudada teatralidade. Trata-se, provavelmente, dos momentos em que Hopkins mais fez uso da experiência adquirida nos palcos. Embora brutais e chocantes, as cenas não são gratuitas ou vulgares e atingem em cheio a sensibilidade daqueles que se permitiram torcer pela boa sorte do personagem. “Inconformismo” talvez seja o termo mais adequado para nomear o sentimento que nasce dessas seqüências. Impõem-se a questão: não poderia ser de outra maneira? E a resposta: não, não poderia. Até onde se sabe, serial killers não são recuperáveis, eles voltam a matar mesmo após longos anos entre um crime e outro. E aí está o nó na garganta que não nos abandonará mais. É possível gostar até do que nos agride e Lecter é um grande sedutor, capaz de unir repulsa e admiração em uma combinação atordoante.
Mas O Silêncio dos Inocentes, durante sua projeção, não deixa muito espaço para reflexões. Elas só nascem depois, com o passar do tempo, lentamente. O mote do filme também está no ritmo, ágil, embora nem tanto. O espanto causado pela fuga de Lecter logo é superado pela tensão provocada pela identificação de Buffallo Bill, pela localização do cativeiro da filha da senadora, pelo confronto final entre o assassino procurado e Starling. O confronto é uma aula sobre como manipular a tensão e o medo. O espectador volta a estar na pele de Starling que, no escuro, persegue um assassino armado, que tanto pode estar diante dela como atrás. Ritmo, som, cenário, iluminação, ângulos de câmera, tudo se completa perfeitamente para produzir momentos extremamente sufocantes.
O filme não tem por base um desses roteiros intrincados que combinam várias ações paralelas em ritmo alucinante. Não, a narrativa é linear e não apresenta maior complexidade. O ponto alto de O Silêncio dos Inocentes está justamente na simplicidade aliada à utilização correta do potencial de cada recurso técnico, mas sem que o resultado final soe excessivamente técnico e sim realisticamente convincente dentro do universo policial e das personalidades psicóticas. Para isso, os desempenhos de Hopkins e de Foster foram fundamentais. Juntos, eles retratam a relação dos psicopatas e suas vítimas, a capacidade que eles exercem de, sem que suas intenções sejam percebidas, baixar defesas e, pela confusão mental que provocam, conduzir situações como bem desejam.
Enquanto os seres humanos ditos normais cultivam escrúpulos e valores éticos, os psicopatas são incapazes de concebê-los como parte de suas personalidades. O estudo da formação das personalidades e do comportamento é uma das áreas mais fascinantes do conhecimento humano. Remonta aos primórdios da filosofia grega e atravessa a história. Se por séculos o que predominou foram as especulações, fundamentadas no pensamento de Sócrates e Platão, nos séculos XVII e XIX, com o surgimento de diversos segmentos científicos, passou-se da especulação ao empenho aplicado às investigações metódicas.
Há duas linhas básicas de análise do comportamento psicopático: a biológica e a psicológica. A primeira investiga as disposições bioquímica dos indivíduos (considerando genética e hereditariedade, reações da química cerebral, etc.) e a segunda diz respeito aos processos relacionados à aprendizagem (assimilação de valores morais e regras sociais) e de personalidade, propriamente. São duas vertentes que se complementam. Aceita-se que, ao nascer, a criança é uma matriz biológica sobre a qual serão “impressas” informações adquiridas junto aos grupos sociais (família, escola, etc.) e que o desenvolvimento moral (noção de certo e errado, comportamento socialmente desejável ou não) é aprendido. A psicopatia surgiria quando, por algum motivo (freqüentemente grandes traumas e ou maus tratos) ocorrido na infância, o indivíduo ficaria impedido de desenvolver comportamento ético.
Assim, embora racionalmente capaz de distinguir entre o certo o errado, o psicopata é incapaz de empatia pelo sofrimento alheio. Em outras palavras, ele não sente culpa pelo sofrimento que provoca, pois não tem capacidade bio-psicológica para isso. É a forma mais perfeita do mal, aquele que acontece sem qualquer possibilidade de arrependimento.
Embora maiores esclarecimentos sobre Lecter tenham surgido anos mais tarde (em Hannibal Rising, que está de acordo com as teorias atualmente aceitas sobre psicopatia), em O Silêncio dos Inocentes, o filme, pouco nos é oferecido sobre o personagem. Ele não tem passado, não tem história, não tem motivações. É apenas um corpo que se mantém em funcionamento, visando a própria manutenção e sobrevivência. E até nisso o filme é perfeito, pois a psicopatia pode ter muitas explicações prováveis, mas nenhuma, jamais, será plenamente satisfatória ou reconfortante. Ela apenas existe e, como um câncer social, silenciosamente permanece entre os inocentes... Um mal absoluto e discreto, como se não existisse.
Caraca, que crítica linda. Helena, você escreve com primazia e sem nunca desperdiçar palavras. Uma ótima análise/crítica do filme esta aqui que você fez. 😁
O mais difícil de avaliar nesse clássico imortal é quem é maior: O Silêncio dos Inocentes ou Hannibal Lecter? Sir Anthony Hopkins nos presenteou com uma das atuações mais seguras de todos os tempos!!!