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Críticas

Cineplayers

Fé e apostasia.

7,5
Um dado concreto a ser observado: Silêncio (Silence, 2016) é o filme de Martin Scorsese que parte de material literário mais relevante desde, pelo menos, A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988), do qual esse trabalho mais recente é uma espécie de continuação não-oficial dentro da filmografia do diretor. Sabemos que qualidade em cinema e literatura nem sempre coincidem, e que um grande livro pode ter uma adaptação frustrante. Baseado em romance de Shusaku Endo (o qual Masahiro Shinoda também filmou no começo dos anos setenta), a história parece à prova de fogo, e grandiosa o suficiente por si mesma, o que faz com que Scorsese não precise inflar o seu estilo de direção, como têm ocorrido nos seus últimos projetos cinematográficos. Não há grandiloquência tampouco fetichismo estético, mas uma notável sobriedade, além de beleza, fé, força e violência em ritmo lento mas não entediante, com um tanto do talento que o cineasta demonstrou em diversas outras ocasiões. 

Silêncio carrega consigo uma extensão política: todo império precisa expandir os limites de sua abrangência para impedir o próprio desaparecimento. É o que ocorre com o império cristão, como no tempo dos jesuítas que saíam pelo mundo catequizar ou converter em novos católicos os habitantes de regiões longínquas fora da Europa. Em Portugal do século XVII, a Companhia dos Jesuítas recebe a noticia de que no Japão feudal o missionário Ferreira (Liam Neeson) praticou a apostasia, e dois de seus seguidores mais devotos, os padres Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garrpe (Adam Driver), partem com o desejo de confirmar a veracidade da informação.

Um filme sobre homens dispostos ao sacrifício pessoal ou levados à renúncia de uma causa ou de um grupo, necessitando reorganizar as circunstâncias justamente em prol da causa ou do grupo. Mas também o choque de civilizações, o abismo nas diferenças culturais, linguísticas e religiosas, ao vermos padres e missionários católicos pregando no Oriente de tradições  milenares. Um pouco de uma viagem conradiana no coração das trevas, ou no caso, em meio ao excesso de nevoeiro, em território hostil dominado pelo budismo, a população totalmente controlada, e o cristianismo ou qualquer influência advinda do Ocidente proibidos de circular no Japão. Uma guerra espiritual que resulta em destroços físicos defronte a impassibilidade da natureza, com perseguições, decapitações, fogueiras, crucificados, etc. Toda uma sorte de horrores como uma presença constante, na tentativa de evitar o tráfico de ideias e de influências e disseminação católica. 

A inquisição japonesa invade residências, buscando qualquer objeto com imagens cristãs escondidas, em meio ao contrabando de objetos religiosos (cruz, santos ou rosários). Num mundo em que parece que Deus ainda não se estabeleceu ou que se omite, e no qual se obtém como resposta apenas a morte, ou o silêncio, Rodrigues vai descobrir que ser um apóstata, mais do que salvar a própria pele ou a de seus iguais, servirá para manter e prolongar a cristandade em território tão beligerante. A forma de lutar contra o caos e a incompreensão que governa entre os homens. Uma semente para árvores que possam consentir colher frutos na posteridade. Permanecer vivo é também um modo de martírio e de resistência para que o ideal e a causa subsistam. A apostasia, aqui, é como a última tentação no filme de 1988, ambas podem desagradar ou enfurecer católicos, mas nesses longas de Scorsese elas existem para reafirmar uma crença. 

Voltando aos atributos e senões com adaptações literárias, detratores de Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007), para que sirva como um exemplo dentre tantos outros, podem com razão afirmar que os seus méritos são todos decorrentes do romance de Cormac McCarthy. Com os Coens fazendo apenas uma ilustração do livro, recaindo na caricatura e no decorativismo, que implode num esvaziamento que reforça a sua fadiga estética. Não é o que acontece em Silêncio, que possui direção segura e corresponde plenamente à potência de suas possibilidades. Scorsese faz o seu melhor filme em duas décadas. 

Comentários (9)

Felipe Lima | sexta-feira, 10 de Março de 2017 - 13:44

Se Mel Gibson tivesse dirigido esse filme seria uma bosta, com todo respeito.

Daniel Mendes | domingo, 12 de Março de 2017 - 00:37

Bom filme, mas não acho de forma alguma o melhor Scorsese em duas décadas (Vivendo no Limite, Ilha do Medo - A PARTIR DAQUI PRO MEU GOSTO - Infiltrados e Lobo de Wall Street são melhores). Tá pau a pau com Hugo...

jorge lucas | quarta-feira, 15 de Março de 2017 - 14:36

Quem não se convenceu com Garfield em Hacksaw Ridge tem que ver esse aqui. O cara brilha!

Letícia | domingo, 23 de Julho de 2017 - 23:51

Impressionante é a capacidade do Scorsese de tatuar seus filmes nas mentes dos espectadores. Capacidade que se renova.
E com certeza seu melhor momento nos últimos tempos.
Mais um do mestre!

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