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Críticas

Cineplayers

A derradeira obra-prima de John Ford é ao mesmo tempo um afastamento e um compêndio de muitos dos temas da carreira do cineasta.

9,0

Ocorre com certos últimos filmes de grandes diretores, seja um De Olhos Bem Fechados (Stanley Kubrick), um A Condessa de Hong Kong (Charles Chaplin), ou este Sete Mulheres (o derradeiro trabalho de John Ford), um desapontamento de grande parte do público perante o resultado final dessas obras, que talvez não sejam filmes aptos a satisfazer a todos em uma primeira visão. São menos filmes para que espera encontrar um material de acordo com o que comumente se associa à mitologia dos tais cineastas − e por isso podendo enxergar muito menos coisa acontecendo do que realmente há, porque enquanto procuram aquilo que não está lá, podem perder aquilo que está, − e mais filmes em que o diretor no último degrau de sua carreira se permite expandir ainda mais suas robustas filmografias, tirando proveito do grande acúmulo de experiências que carregam, o que faz com que Sete Mulheres se apresente como uma peça de qualidade extraordinária na obra de Ford.

Sete Mulheres, como grande parte da filmografia do cineasta, ainda se passa em terreno beligerante, mas agora o território é outro: o norte da China, perto da fronteira com a Mongólia, na década de 30, em uma terra de senhores feudais e legiões de guerreiros mongóis. A ação transcorre numa comunidade de missionárias norte-americanas, lideradas pela Srta. Agatha Andrews (Margaret Leighton), que se dedicam à catequização e ensino da população chinesa dos arredores.

Como era comum em seu estilo, Ford se concentra, durante grande parte do filme, em fazer uma descrição desse grupo humano, cuja rotina conservadora e religiosa é abalada pela chegada da Dra. Cartwright (Anne Bancroft), a médica de hábitos liberais e despudorados, cujo comportamento avançado entra em choque com as regras impostas pela rígida diretora da instituição, extremamente puritana e que não esconde que dentro de algum tempo pretende dispensar os serviços da médica. A diretora pertence a um outro tempo, cada vez mais em vias de extinção, e se recusa a aceitar o novo mundo que se descortina através da personalidade espirituosa e vivaz da Dra. Cartwright, que segue a tendência que surgia na época de mulheres com cabelos razoavelmente curtos, além de utilizar palavras profanas e fumar pelos cotovelos. A Srta. Andrews, com sua intolerância religiosa que lhe cega, apenas vê as diferenças de pensamento como um grande mal personificado pela personagem de Bancroft, que sem condições de possuir um consultório próprio decente, fugira da América cansada por derramar o suor nos piores hospitais, e buscando esquecer a experiência malfadada com um homem comprometido.

A presença da forasteira divide as opiniões das outras mulheres da casa, entre as quais a jovem encarnada por Sue Lyron (a Lolita do filme de Stanley Kubrick), que se fascina com a liberdade de espírito e o bom coração da personagem, e uma outra bem mais velha prestes a ter seu primeiro filho, e que depende de auxílio profissional para que a gravidez transcorra bem. A praticidade da médica possibilita que ela se instale e seja aceita entre as demais, enquanto se entende com a diretora, uma mulher mal-resolvida, e que por vezes parece ter um interesse dúbio (e não-assumido por si própria) em relação a algumas companheiras com que mantém mais proximidade.

A crença religiosa da Srta. Andrews também a faz duvidar que sua comunidade seja atacada pelas tribos mongóis do guerreiro Tunga Khan (Mike Mazurki), que aterroriza as cercanias da região. Não somente pela confiança na proteção divina, mas também por acreditar que o fato de serem norte-americanas impeça os selvagens de ousarem se aproximar de sua Missão cristã, contando ainda com o respaldo de uma pequena guarnição do exército chinês.

Em contraste com a primeira parte, mais lenta, descritiva, por vezes repousando em tempos mortos, a partir da invasão da tribo mongol o filme se torna mais ligeiro, explora os acontecimentos dramáticos com desenvoltura e determinação, de acordo com a fúria do chefe bárbaro, que saqueia e acampa tomando conta do território, desencadeando uma orgia de sangue e violência com seus soldados que rondam de forma diabólica em torno de suas presas com um brio degenerado (enquanto aguardam a chegada da polpuda quantia em dinheiro pedida como resgate para libertar as missionárias).

É quando Sete Mulheres intensifica as características recorrentes na carreira de Ford, como concentrar-se em um grupo humano isolado em um ambiente hostil, o choque cultural e o confronto da civilização com a barbárie, e por fim, o auto-sacrificio pelo qual a personagem da médica se submete gradativamente, colocando a própria segurança em risco ao interceder com o chefe dos bárbaros por auxílio e boas condições às suas companheiras (especialmente para a que está passando por uma gravidez de risco), entregando-se ao guerreiro mongol toda vez que precisa ajudar as suas colegas da Missão, o que vai crescendo de maneira enlouquecedora, para desespero da sua diretora-chefa, que julga inaceitável a atitude de Cartwright.

O filme de alguma maneira lembra a obra-prima de Don Siegel, O Estranho Que Nós Amamos (que seria feito cinco anos depois), no sentido de um personagem avançado e liberal penetrar e ser acolhido em um ambiente rígido e casto, buscando refrear o puritanismo dominante e sendo tratado de um modo ao mesmo tempo hostil e cordial, terminando por uma forma ou outra ser sacrificado no final, justamente para que toda aquela estrutura vigente seja preservada (incluindo um detalhe com veneno presente em ambos os filmes). O personagem feminino mais forte do filme, a mulher autêntica e sem máscaras que antes não se submetia à vontade de ninguém, tem seu desfecho numa encenação digna de filme de terror, encerrando com crueldade uma história que significa a salvação de uns e a flagelação de outros, após surgir em um corredor escuro iluminado apenas pelo lampião que carrega em uma das mãos, e com o olhar desolado de quem perdeu nosso atributo mais vital: a própria identidade.

O que se pode perceber, à primeira vista, é que John Ford era um grande diretor de filmes de personagens masculinos, supostamente tendendo a uma quase explícita misoginia, como se o cineasta se sentisse menos à vontade com figuras femininas. O que é só uma impressão, porque o diretor geralmente conseguia inserir e aproveitar personagens de mulheres em seus filmes quando necessário, agrupando todas juntas nesse seu último e excelente trabalho, que coroa uma carreira de cerca de meio século de obras-primas.

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