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Críticas

Cineplayers

Um filme do barulho.

5,0

Inevitável falar de A Serbian Film – Terror Sem Limites (Srpski film, 2010) sem mencionar a vergonhosa atitude tida contra a obra durante a Rio Fan, festival de cinema fantástico do Rio de Janeiro, do qual o filme foi banido em julho deste ano, tendo posteriormente sua cópia em película apreendida pela justiça brasileira - sob a acusação de crime contra o estatuto que protege a criança e o adolescente. Pra resumir a história, já meio ultrapassada (mais informações aqui): pessoas com mais poder do que mereceriam ter, sem nem mesmo verem o filme, baseando-se em notícias histriônicas da nossa imprensa, acusaram-no de algo que ele, sob hipótese alguma, faz: incentivar a pedofilia e colocar atores mirins em situações moralmente denigrentes (o que é ainda mais engraçado quando se sabe que, na encenação de uma das sequências mencionadas pelos censores, o que vemos em tela é um boneco, e por questão de dois segundos).

Mesmo com toda a polêmica, A Serbian Film aos poucos estreia em alguns cinemas do país – o que era natural de acontecer, visto que o filme agora vende-se por si só. E, convenhamos: não poderia haver publicidade maior para o longa de Srdjan Spasojevic, que também já possui no currículo vetos em outros países como Noruega, Espanha e Inglaterra. Vale lembrar que, antes do veto, tratava-se de uma obra pouco conhecida, e semelhante ao que ocorreu em outros festivais por onde passou, como o Festival Lume de Cinema e o Fantaspoa, seria projetada em uma sessão exclusiva para maiores de 18 anos. A censura prévia (a primeira no Brasil desde 1986, quando Je Vous Salue, Marie [idem, 1985], de Jean-Luc Godard, foi banido dos cinemas por motivos religiosos) no Rio de Janeiro acabou servindo de incentivo para que milhares de brasileiros fossem em busca do filme por meios alternativos, o que aos poucos transformou-o em assunto geral de redes sociais, blogs, sites, etc. 

A polêmica fez de Um Filme Sérvio, seja pelo motivo que for, um dos filmes mais discutidos do ano no Brasil, despertando curiosidade até mesmo de quem jamais veria um filme com tal premissa. O que de certa forma é lamentável, pois por mais que não corresponda a nenhum dos ataques sofridos, e que sua passagem pelos cinemas possa ser vista como uma “vitória” contra o moralismo, especialmente quando usado para projeção pessoal ou com viés político, trata-se de um trabalho médio, sem muito a oferecer. Mais do que isso, ocupa um pequeno espaço que poderia ser disponibilizado para cineastas e filmes de maior relevância, e que ainda hoje não conseguiram acesso ao nosso circuito. Acima da conquista do direito de aqueles que desejam ver o filme terem essa opção, que é legítima e justíssima, vemos mesmo é um novo caso de vitória do barulho contra a arte e a cultura, as maiores vítima disso tudo.

Mas não sejamos inocentes: ocorrências como estas já deviam estar previstas no itinerário de Spasojevic para a carreira internacional de seu filme, já que são consequências das escolhas feitas pelo cineasta para a composição dele, e também refletem algo sobre os limites que ele impõe à sua expressão estética (ou melhor, sobre a falta deles, não por nada mencionada no subtítulo dado ao filme no Brasil). Segundo Spasojevic, o tema central proposto por A Serbian Film seria a perturbação moral da população de seu país, a Sérvia, ex-Iugoslávia, declarada em 2008 um país independente, e que nas últimas décadas passou por períodos conturbados, dos quais ainda engatinha para se recuperar - a Sérvia, por exemplo, ainda enfrenta altas taxas de desemprego, consequentes de um sistema econômico deficitário, o que deve ser levado em consideração para compreensão mínima do cenário em que o filme se instala.

A Serbian Film parte então da luta de um pai de família para manter sua mulher e filho com um padrão de vida médio, aceitável, em meio ao caos socioeconômico de seu país. O homem, apesar de graduado, ganha a vida como ator da indústria pornográfica. É ao aceitar um trabalho para um filme sigiloso, que pode tornar real o sonho de conseguir dinheiro suficiente para se livrar da vida que leva sem perder tudo o que tem, que o conflito se cria. A construção do mistério sobre as origens/finalidades deste trabalho é bem sustentada por Spasojevic, que faz da reação de curiosidade e apreensão de seu protagonista um medidor para a própria reação do público – convocando-nos a participar de tudo ao lado dele, quase que em seu ponto de vista, um recurso que funciona muito bem em sequências como a primeira cena gravada para o filme-dentro-do-filme, que pega a todos de surpresa, com cinegrafistas mascarados surgindo dos cantos do cenário, e nas descobertas feitas por seu protagonista através das fitas de vídeo que furta do diretor, já próximo ao final, quando repara que a merda em que se meteu é muito maior do que imaginava.

Ao mesmo tempo em que é bastante digno nestas suas opções narrativas, há de se convir que a temática acaba conduzindo o filme a caminhos que, por maior que seja a compreensão que se tem à proposta de Spasojevic, fazem da experiência algo que transcende a questão de eficiência ou não, indo de encontro a uma discussão bem mais ampla. Ao vermos um homem drogado decapitar uma prostituta enquanto a penetra nos sets de um filme pornô, ao olhar despudorado das câmeras (tanto do filme-dentro-do-filme quanto do próprio filme, que não poupa o espectador dos detalhes mais sórdidos da ação), estamos diante de uma imagem que suscita vários questionamentos e sensações, que podem variar dependendo daquilo que cada espectador espera/suporta ver. A mim, infelizmente, as sensações em cenas como esta não vão além do mero choque pelo choque, o que acaba colocando o cinema de Spasojevic no mesmo saco de atrocidades como os filme de Lars Von Trier e Michael Haneke, dois exemplos de cineastas que se utilizam de artifícios de choque baratos de forma hedionda.

Mas não se pode, mesmo com isso, acusar A Serbian Film de gratuidade. Spasojevic tem consciência da ficção que se propõe a encenar, e mesmo estes excessos e a utilização grotesca deles em algumas sequências (a da cena derradeira do filme-dentro-do-filme, especialmente, é nojenta) são bem calculados como progressões naturais da situação limítrofe apresentada no filme. A dependência quase que exclusiva destas sequências, aí sim, é que me parece questionável. O diretor afirma que a escolha pela indústria ilegal do cinema pornô é meramente opção de uma profissão para seu protagonista; que poderia ser qualquer outra. Será? O filme, desta forma, já parte da ideia de exploração e do choque ao optar por lidar com os limites do sexo, um dos grandes tabus sociais em qualquer período histórico. Ok, não devemos fechar os olhos à questão (e ninguém duvida que coisas piores do que as encenadas em A Serbian Film ocorram em nosso mundo), mas convenhamos: ela faz parte de uma realidade que poucos se propõem a visitar tão abertamente, o que faz do filme algo naturalmente controverso, apto à polêmica rasteira, talvez até mesmo propositalmente pensado para ela.
 
O que me deixa em dúvida sobre quanto, afinal, restaria de tal discussão moral pretendida por Spasojevic em A Serbian Film caso a história acontecesse fora deste eixo sexual. Apesar de ser passível de crítica esta cobrança ao filme e àquilo que ele supostamente seria caso tomasse outros rumos, não consigo me desvincular da ideia de que, para além das respeitáveis qualidades narrativas e da coerência que mesmo as cenas mais chocantes mantêm com a evolução de sua história, estamos diante de algo que já nasce duvidoso desde a proposta. E aí, enfim, não sobra muito o que fazer.

Comentários (18)

Daniel Dalpizzolo | segunda-feira, 17 de Outubro de 2011 - 21:05

Acredito que mais do que permitir isso, Vinícius, a arte necessita disso. Caso contrário, não há motivos pra escrever sobre ela.

Patricia Izilda Silva | terça-feira, 30 de Abril de 2013 - 21:41

Mesmo que o filme tenha sido feito com uma intenção de crítica política, achei que exagera muito em algumas cenas(sei que foram feitas para chocar), mas acredito que não precisava tanto. Fiquei bastante tempo com o filme no computador, até ter coragem de assistir, assisti porém pulando algumas partes, não daria nem nota 5, mas sim um 2.😲

Luiz F. Vila Nova | segunda-feira, 20 de Agosto de 2018 - 16:26

Finalmente assisti ao filme hoje e já o considero o mais doentio que já conferi até agora. Senti forte inspiração da obra-prima de Passolini, "Saló ou os 120 Dias de Sodoma", seja no contexto político ou nas insanas cenas de violência explícita (sem a mesma genialidade, é claro). Mas o filme esta longe de ser o lixo gratuito como muitos parecem acreditar. Tem uma edição primorosa, crítica política e social (através de símbolos e metáforas) e uma atuação visceral de Srdjan 'Zika' Todorovic como Milos, por exemplo. Mas é um filme pra poucos, sem dúvida.

Rodrigo Nuso | segunda-feira, 17 de Maio de 2021 - 11:08

Pensei muito sobre isso. Mas pra mim é só uma porcaria doentia, mesmo. E é mal conduzida, pra piorar. Sem querer dar uma de sensível, mas tem umas besteiras (como essa) produzidas por aí que são só desnecessárias, mesmo.

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