Um estudo recente do Conselho Nacional de Justiça aponta que o nível de reincidência dos presidiários no Brasil chega a 70%. Menos importante do que se espantar com quantos presos voltam para a cadeia depois de serem soltos, devemos nos atentar para o processo que resulta nisso. A sociedade brasileira não consegue perceber que nossos traços punitivos, talvez uma herança da Casa Grande, colocam o país em uma situação deplorável, onde somos capazes de apontar o dedo, mas jamais apertar a mão de quem um dia nos assaltou, por exemplo.
Numa relação intrincada envolvendo economia, política, sociedade e conceitos jurídicos, o sistema carcerário brasileiro sofre de problemas estruturais urgentes, alimentando uma máquina autofágica, um looping eterno de punição. Eugenio Puppo, em Sem Pena, desvela várias facetas do processo, indo ao âmago do problema para revelar possíveis soluções. Os depoimentos dos presos exibem a sua consciência crítica em relação à realidade em que se insere, sendo todos frutos de seu espaço-tempo. Desde quem entrou na cadeia por acidente (literalmente) até quem cometeu crimes perante o olhar da lei, Puppo dá voz aos que nunca a tiveram, buscando, além de mostrar como funciona as prisões do Brasil, compreender o processo socioeconômico que levou aqueles sujeitos a cometerem tais atos. Não há pessoas ruins no documentário, mas movidas pelas forças da circunstância. Nesse sentido, alguns depoimentos são especialmente fortes (e lúcidos) por justificarem o seu crime porque pelo roubo pode-se alcançar o que se diz felicidade em uma sociedade consumista, sendo que certas posses seriam impossíveis apenas pelo trabalho honesto de um trabalhador.
Há quem acuse o documentário de didatismo. Besteira. Mesmo indo atrás de todas as nuances possíveis do sistema prisional, Sem Pena não dá conta de toda a complexidade do processo – e nenhum filme atingiria isso plenamente, diga-se. O debate, aliás, ganha uma força única. Puppo está interessado somente nisso, na verdade. Os indivíduos e suas particularidades são nulos, peças num tabuleiro, sujeitos sem rosto. O que importa, no fundo, é o discurso, a fala, o que se tem a dizer, não quem tem a dizer. Não por acaso, somente nos créditos finais descobrimos quem são os entrevistados. Não se permite nenhum tipo de sentimentalismo, apenas a revolta e denúncia. Nada tem de revolucionário o choro pelo choro.
Toda a relação imagem-som, todavia, acaba empobrecida pela duração do longa-metragem, forçando o diretor a utilizar algumas imagens aleatórias em certos momentos com a única finalidade de preencher tempo vazio, sem nenhuma relação com o que se ouve, contrariando completamente a teoria eisensteiniana da utilização do som num filme, por exemplo. Para não ser injusto, vale mencionar que existem algumas poderosas metáforas visuais, como os pássaros voando em liberdade enquanto um depoente discorre sobre os aprisionados. Já a associação das imagens com a burocracia envolvida no sistema toma ares de horror. Para Puppo, os processos judiciários são uma espiral kafkiana das mais aterrorizantes. Nada mais coerente, portanto, do que a pesada trilha-sonora composta por músicas intensas e sons que remetem às próprias prisões, formando um clima de suspense.
Embora fortíssimo em discurso, Sem Pena emula, sem querer, o próprio ritmo dos processos jurídicos brasileiros, saturando um pouco sua estética. Não deixa de ser, todavia, uma contundente descida ao inferno abaixo dos trópicos.
7,5
Parece ser bem interessante esse documentário. Preciso ver.