Nunca um filme assume com tanta convicção sua condição de filme quanto na hora da morte. De repente a máquina que até então empregava toda uma trucagem cênica para acobertar suas amarras com o mundo real expõe sua natureza e o aparato que a suplementa. Pode ter começado com a evidência técnica do cinema pré-20 (que não se podia mesmo paliar), com o sobressalto de uma pianola escrachada compensando o silêncio do filme mudo ou a projeção de um deserto no fundo falso para emular uma irrealizável perseguição de carruagens. Não importa realmente. Mesmo no western das décadas de 40 e 50, a morte, motor do gênero, é tratada antes como ideal do que exatamente como signo. Hawks, Ford e Anthony Mann emprestam tanta elegia e reverência à hora da morte que a ficcionalizam quase que por acidente (como ocorria aliás bem antes do cinema). O tiro no western clássico quase nunca deixará de exibir uma qualidade implícita de farsesco, o que acaba se irradiando para todo o cinema de ação americano (seu eterno afluente). Em primeiro lugar porque raramente no filme de estúdio a carga de uma morte desmitificada é algo conveniente (até por uma questão de ritmo. É preciso movimento, matar e seguir em frente). Em segundo lugar porque o constrangimento do homicídio está ligado a um constrangimento do homem em relação à sua própria natureza.
Em função disso não foi nada além de um passo lógico para Clint Eastwood fazer exatamente da morte o grande ponto de desencontro entre mito e realidade na sua desconstrução pessoal do western, Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992). Quando William Munny acerta o estômago de um fazendeiro com seu rifle, do alto de uma encosta, é o ritmo da morte em si que determina o ritmo da cena. Não se trata mais de derrubar alvos móveis um após o outro com a rapidez do intervalo que se leva até o tambor do revólver completar seu movimento e posicionar uma nova bala na agulha, não se trata mais de matar com a velocidade própria da indiferença em relação à vida que o seu pistoleiro sem nome demonstrava nos spaghettis de Sergio Leone. Em Os Imperdoáveis, o alvo não cai em silêncio ou em um ajoelhar-se honroso para então tombar na terra com a imponência e a elegância de uma grande ópera. Pelo contrário, ele se arrasta, grita de dor, sente sede, chora ao se dar conta de que logo estará morto. Por mais esquemática e mastigada que a desconstrução de Eastwood seja, ela é exata, como aliás precisava ser.
Quando esse tratamento fático à morte é dado por um filme de guerra (e em 1930), toma-se outra proporção. Sem Novidade no Front (All Quiet on The Western Front, 1930) é todo a respeito dessa dualidade entre a verdade e a mítica da guerra que já fora tema de outras obras na literatura, na pintura, no teatro, mas sem nunca encenar a verdade com a precisão e o detalhamento que o cinema lhe confere, desenhando entre as duas ideias um contraste mais cognoscível. Já passa da metade do filme quando um jovem soldado alemão, escondido à noite em uma trincheira, mata seu inimigo a golpes de punhal. A morte lhe é obviamente diferente das anteriores que ele havia visto ou mesmo infligido no campo de batalha, com tiros de metralhadora e explosão de granadas. A diferença do homicídio no filme de Milestone está no instrumento. A lâmina humaniza a morte, força um a cortar a carne do outro e ter seu sangue respingado em oposição à anestesia de apertar um gatilho a vários metros de distância.
A aproximação do soldado Paul Bäumer em relação à morte é o que o escandaliza para a gratuidade na mecânica da guerra, a mesma gratuidade que coordena a roleta russa de Michael Cimino em O Franco-Atirador (The Deer Hunter, 1978) e a mesma aproximação que desconcerta os sargentos Zack e William James, em Capacete de Aço (The Steel Helmet, 1951) e Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008), ao saberem da morte do menino que haviam conhecido na guerra. É esse momento (bem mais que o filme no todo) que pontua o início de uma narrativa antibelicista que torna a se reencontrar em diferentes pontos do tempo no cinema, da crueza ancestral de Milestone à nudez apavorante de Sam Peckinpah (em Cruz de Ferro [Cross of Iron, 1977]), cinema que cruza caminhos no mesmo olho aflitante de um bicho em Vá e Veja (Idi i Smotri, 1985) e Apocalypse Now (idem, 1979). Basta extirpar da morte seu romantismo artístico para reencontrar no seu retrato um chamado, grito antigo de negação à própria ficção que leva um soldado no Iraque a meditar sobre o corpo detonado de um homem-bomba ou um soldado alemão chorar sobre o corpo do inimigo francês numa trincheira perdida da Primeira Guerra.
Ao quebrar a prescrição do western e abordar a morte com a gratuidade que lhe é inerente e com a frontalidade que o cinema clássico maquia, o filme antiguerra fala diretamente ao espectador e atribui para si uma missão fracassada já a priori, e por dois motivos: (1º) o discurso de obliteração da guerra e preservação da vida de um Sem Novidade no Front é todo tecido com evidências de que talvez esta vida não valha mesmo ser preservada; (2º) o melhor filme antibelicista terá de resignar-se com o fato de que a arte, por mais importante que seja, não é importante o suficiente para impedir uma briga de trânsito, e que mesmo imbuído dos mais altos valores e dos mais nobres ideais, sua qualidade de entretenimento pago é inalienável. Resta-lhe a qualidade da reflexão e da memória: ainda que facilmente subjugáveis, valentes bandeiras contra a mudez dos indiferentes.
7,0
Melhor crítico do cineplayers.
[2]
Poderia ser um bom texto se tivesse maiores relações com o próprio filme... 🙄
???