7,0
Em uma das passagens mais inacreditáveis da terceira temporada de Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost, o ator Michael Cera faz uma rápida aparição com seu já inesquecível personagem Wally “Brando”, usando uma jaqueta de couro preta, calça jeans, boina e montado sobre uma imponente Harley-Davidson. Ele fala a respeito das estradas que percorre, das pessoas que deixou para trás, e também reafirma sua liberdade e constante busca pelos caminhos que seu coração aponta pelas longas estradas que cruzam o país. Não é preciso conhecer muito de cinema para sacar a óbvia referência que o personagem faz a Marlon Brando e sua icônica participação no filme O Selvagem (The Wild One, 1953), de Laslo Benedek, que acaba de ser lançado no Brasil em DVD pela Obras-Primas do Cinema, em edição de colecionador.
O fato de uma série atual fazer uma referência tão clara a um filme de 1953 sem qualquer receio de passar despercebida significa que o objeto de culto é, no mínimo, marcante. O Selvagem está na categoria de filmes que não são tão grandes por si só, mas cujo impacto foi capaz de mudar para sempre o cinema e virar um artefato pop influente para toda uma geração. Sem ele, o rebelde sem causa James Dean de Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955) talvez não existisse dentro daquele molde que alçou o ator ao estrelato imediato. Sem ele, talvez o iminente movimento de contracultura no cenário americano não tivesse se configurado dentro daquele cenário de jovens rebeldes atravessando rodovias em suas barulhentas motocicletas, óculos ray-ban e jaquetas de couro. A verdade é que, sem O Selvagem, é muito difícil imaginar o que teria sido do cinema e da cultura americana.
Marlon Brando havia despontado há pouco tempo em Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire, 1951), mas já era um astro em meteórica ascensão, com três indicações ao Oscar e um prêmio de melhor ator em Cannes. Seu método de trabalho cru e realista mudou para sempre a tradição em Hollywood, mas foi somente com O Selvagem que ele de fato se solidificou como um ícone pop desses raros que, com tempo, viram sinônimos do próprio cinema. Sua postura debochada, subversiva, afrontosa e rebelde transparecia em seus papéis, de modo que o personagem principal no filme de Benedek só poderia ser dele e de ninguém mais. Logo na abertura, com tomadas de Johnny e sua gangue cortando estradas através de cidadezinhas americanas, arranjando confusão e apostando rachas, O Selvagem já se anunciava como um veículo feito sob medida para tratar de transformar a aposta alta de Hollywood em um sucesso sólido e consagrado.
O plot fazia parte de uma leva de filmes B que logo viraram uma tradição muito forte nas histórias americanas dos anos 1950 em diante: o bad boy que se apaixona pela moça de família. Através dessa linha de história, era possível traçar um retrato sobre o confronto cada vez maior entre o tradicional e o subversivo, o jovem e o antigo, que despontava na sociedade americana do pós-guerra. Nada mais de mocinhos íntegros de terno e gravata, o interesse jovem estava na calça jeans e no questionamento dos valores morais de uma sociedade que tentava manter as aparências em suas fachadas suburbanas de cercas brancas e jardins floridos. Tudo em Johnny aviltava esse padrão: as roupas, a postura, a Triumph Thunderbird 6T, e a atitude de não demonstrar qualquer receio perante a lei. Tudo o que no western era caracterizado como vilanesco, na figura de um forasteiro ou pistoleiro corrompendo uma pequena comunidade e sendo combatido por um xerife-herói, aqui é deslocado para o tempo atual e invertido: a lei, a polícia e os cidadãos pacatos são ultrapassados e retrógrados, enquanto Johnny/pistoleiro/forasteiro é um agente de caos que vai desmoralizar as tradições arcaicas do local. Ao mesmo tempo, Johnny não é caracterizado como um vilão, mas sim um anti-herói, cínico e desiludido, desgostoso com sua América e por isso sempre na estrada em busca de algo capaz de preencher seu vazio ou calar seu coração inquieto. Kathie Bleeker (Mary Murphy), por outro lado, é a garota certinha e careta que se encanta por ele, mas disposta a abrir os horizontes para um novo ideal social, ou o ponto de equilíbrio entre o os extremos de conservadorismo e anarquia.
O Selvagem começava a tradição desse tipo de filme, mas ainda é um trabalho amarrado no cinema da Velha Hollywood, não subversivo o suficiente para fugir muito do desfecho esperado para o público conservador. Seu papel dentro do cinema foi o de semear, de modo que hoje funciona muito mais como um artefato de culto pop do que exatamente um filme revolucionário em termos de direção ou roteiro. E isso não é pouca coisa, visto que ao longo das décadas que se seguiram vimos incontáveis “crias” de O Selvagem: desde Sem Destino (Easy Rider, 1969), o tratado libertário de Dennis Hopper e um dos símbolos máximos da Nova Hollywood, até a própria série Twin Peaks, já mencionada acima, que em suas duas primeiras temporadas misturou o moderno dos anos 1990 ao charme retrô estético/narrativo do cinema dos anos 1950, a exemplo do romance entre o bad boy James Hurley (James Marshall) e a mocinha Donna Hayward (Lara Flynn Boyle).
No DVD lançado pela Obras-Primas do Cinema, há a vantagem de conferir O Selvagem em versão remasterizada e assistir a diversos extras importantes. Em um deles, intitulado “Hollister, California: Bikers, Brooze and the Big Picture”, há um conteúdo especial sobre a influência do filme sobre essa tradição dos motoqueiros que até hoje percorrem as rodovias americanas com suas jaquetas de couro. Há também vídeos sobre a ascensão de Brando e sobre o produtor Stanley Kramer. Para além desses extras, O Selvagem é um filme importante na bagagem, seja por seu charme hoje ingênuo, seja pelas inúmeras influências que até hoje são sentidas na nossa cultura.
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