John Huston subtrai os intervalos diurnos e cria uma sequência temporal própria ao iniciar seu O Segredo das Jóias (The Asphalt Jungle, 1950) num denso anoitecer, aguardar vigilante por 105 minutos a interminável madrugada, e encerrá-lo no primeiro raio da manhã como quem se senta ao lado de um leito a noite inteira esperando a morte chegar.
Há uma ingenuidade de certo modo incompatível com o film noir na visão de John Huston sobre o submundo. Todos os piores ratos em O Segredo das Jóias têm seu motivo, todos os homens com uma arma na mão são homens inocentes. Não existem conceitos discerníveis acerca da personalidade humana, não existe a cobiça senão para atender a uma outra necessidade; não existe o dinheiro como dinheiro apenas, mas como um acesso, condição sine qua non para a própria continuidade da vida. Enquanto que em O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of Sierra Madre, 1948) o ouro era uma instituição capaz de inverter papéis, de pegar um Humphrey Bogart e transformá-lo num maltrapilho assassino, aqui as jóias não passam de uma fuga para longe.
Com a ideia de vilania extinta (conforme característica do noir, embora em geral ela seja apenas parcialmente subvertida), Huston nos aproxima de cada personagem eliminando todos os possíveis antagonismos, fundindo todos os lados da história em um lado só.
Usualmente, sendo o personagem de Sterling Hayden o herói eleito, supõe-se que a câmera deveria acompanhá-lo de perto em cada ida e vinda pelos bares no meio da noite enquanto planos sujos são armados pelas suas costas, mas não é o que acontece. Assistimos a Hayden entrar e sair de um lugar como se fosse um personagem qualquer enquanto outros conversam a seu respeito. Observamos de perto uma traição sendo tramada sem que haja oposição estabelecida entre traído e traidor, e é diabólico fazer com que o espectador se importe com cada personagem ao longo de um filme ao mesmo tempo em que o deixa — como quem revela fingindo ser sem intenção — saber que tudo vai dar errado para cada um deles.
Se em todo noir há o homem solitário que o espectador elege como seu porto seguro, O Segredo das Jóias parece generoso em um primeiro momento ao apresentar todos como personagens relacionáveis apenas para, em seguida, triturá-los um a um e nos deixar sem qualquer chão ao apagar das luzes.
Impossível ignorar o vínculo entre queda e vício, entrelaçados por uma ironia amarga que faz cada fracasso parecer dolorosamente justo. Não poderia ser outro que não a paixão — nas suas mais estranhas formas — o caminho para o declínio? Seja por vezes puro (como no caso dos cavalos que Dix tanto ama) ou sujo (no encanto de Doc pelas jovens mulheres), é o desejo que tanto move os homens em frente, quanto (de tanto seguirem) os leva ao final da linha — como que algo inevitável. Huston parece sugerir que não há outro destino possível, através da direção certa, que a própria morte, e que o final da trilha de migalhas para fora da floresta é, também, o final de tudo.
De uma crueza que serviu de escola a Jules Dassin e Jean-Pierre Melville, de uma reversão narrativa que encontra o sempre revisitado pessimismo, mas por caminhos nunca antes acessados no noir, O Segredo das Jóias é um conto urbano que trata a inocência como uma qualidade indisponível e a maldade como uma invenção do mundo.
Aos olhos de Huston, até os piores homens na terra não passam de crianças perdidas, todas tentando encontrar o caminho de casa.
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