Em seu sétimo filme, Sede de Paixões (1949), Bergman encontrou seu rumo. Seu estilo já tinha aqui todos os contornos do grande diretor que viria a se tornar nos anos seguintes. Essa obra de seres atormentados, casamentos fracassados, suicidas desesperados e amores exasperados possui todos os ingredientes já devidamente enquadrados e tocados com mão do mestre. Se em Porto (1948) ele ainda hesitava e copiava os italianos, neste Törst (só sede no título original, o ridículo “de Paixões” só podia ser mesmo brasileiro) já havia o diretor Ernest Ingmar Bergman.
Trata-se de um dos raros filmes em que ele não é o roteirista. São quatro histórias, adaptadas em estilo teatral de quatro contos da escritora sueca Birgit Tengroth (ela mesmo uma das atrizes do filme), narradas de forma elíptica, fragmentária em excesso, repleta de flahsbacks, que vão se misturando e se descobrindo a partir de detalhes e semelhanças/diferenças sutis, sincrônicas ou não, sempre iluminadas pelo espectral e soberbo preto-e-branco do fotógrafo Gunnar Fischer, genial em todos os momentos, do início ao fim – ele já havia atingido seu auge antes do diretor.
Dentre a confusa teia narrativa do filme, na estória principal um jovem casal em crise percorre de trem a Europa devastada pela guerra, com pedintes implorando comida nas estações pelos vidros das janelas. A imagem das ruínas na Alemanha fazendo paralelo com o desespero do casal sufocado nos cômodos do trem é uma dessas típicas cenas que Bergman faria com genial criatividade em toda sua carreira. O amanhecer deles, a discussão sobre o café da manhã etc, antecipa em 14 anos o Acossado de Jean-Luc Godard (A Bout de Souffle, 1963) e parte da Nouvelle Vague francesa que filmava em tempo real e em quatro paredes a vida de um casal.
A terrível vida da moça (aborto que a deixou estéril, a paixão pelo homem casado e mais velho que a engravidou) tem seu ponto máximo quando ela entra para a escola de balé e, para se defender da tortura dos infindáveis ensaios e da opressão da professora, alia-se a uma das colegas e com ela se imiscui de tal forma que praticamente troca de personalidade. Antecipa, pois, um dos clássicos de Bergman, Persona (1966).
Na mais curta e tocante das histórias, a única não tragada pelo exagero na construção do filme, uma viúva recente procura um psicoterapeuta canastrão para tentar se curar da imensa angústia que sentia após a morte do marido. Ao descobrir a real causa de seus medos internos com uma antiga colega de escola, ruma para o precipício existencial que tem a catástrofe como derradeira e única saída.
Vendo Sede de Paixões fica mais fácil entender como os críticos brasileiros já gostavam de Bergman antes mesmo de ele ser descoberto pelo mundo ao vencer o Grande Prêmio da Crítica no Festival de Cannes por Sorrisos de uma Noite de Amor. Antes de Cannes, Bergman já havia feito Monika e o Desejo, Noites de Circo e pequenos filmes importantes como esse Sede de Paixões, material mais do que suficiente para que os críticos, se realmente dignos desse nome, o levassem em conta.
Grande momento da crítica brasileira, portanto, ter descoberto Bergman antes mesmo de muitos colegas europeus e americanos. E até mesmo do próprio Bergman, que detestava esse Sede de Paixões, dizendo que ele não tinha “verdadeira força cinematográfica”. Pode ser que ele tenha razão, mas ninguém precisa acreditar: a maneira terrível e dura como Bergman analisava a própria obra já se tornou folclórica.
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