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Sangue Negro

(There Will Be Blood, 2007)
8,2
Média
1020 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Épico atemporal de um homem só.

9,5

Paul Thomas Anderson firmou-se com um trabalho extremamente bem conduzido e inesperado para um cineasta jovem que estava apenas em seu segundo filme em Boogie Nights. A partir daí, ele deu um salto maior ainda e construiu um dos clássicos dos anos 90, Magnólia, um filme que com o tempo parece ganhar mais admiradores, o que só reforça o status de referência que ele atingiu. Com Embriagado de Amor, confesso que fiquei com medo de Paul Thomas Anderson ter se transformado em mais um desses “cineastas de cinéfilo”. Embora não seja um trabalho ruim – muito pelo contrário –, há uma certa tendência nesse filme em focar demais em um conceito e, por fazer pouquíssimas concessões, tornar-se limitado, voltado apenas para um público que idolatra o diretor e que vai adorar qualquer repetição ilimitada dos hábitos cinematográficos que o consagraram. Tinha medo de que Paul Thomas Anderson se tornasse auto-indulgente e, vulgarmente falando, bitolado. Por sorte, estava enganado. Com Sangue Negro, o diretor e roteirista faz uma curva aguda na sua trajetória e investe toda a sua energia, competência e técnica para contar uma história épica que é quase uma fábula sobre a essência do capitalismo e que explica porque os EUA são o que são hoje. É um exercício difícil, mas que nas mãos dele torna-se memorável e obrigatório.

A partir do livro Oil do norte-americano Upton Sinclair, Paul Thomas Anderson narra a ascensão do magnata do petróleo Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis). De um simples explorador solitário de prata ele se torna o maior dos pioneiros na exploração do petróleo na região da Califórnia, mas aos poucos começa a perder terreno. Não seria correto, entretanto, dizer que é um filme sobre ascensão e queda, pois desde o começo Plainview carrega os elementos que o impedem de chegar a um auge, a um limite. Sua fome de riqueza transforma a sua vida em uma constante luta para alcançar um a mais que nunca chega e para manter um já conquistado que ele considera como sua própria integridade. É uma caminhada às cegas que firma-se através do ímpeto de perpetuar-se em si mesma, num processo sem fim, mas que não sai do lugar. Por isso, não existe ascensão e queda definidas. As duas etapas estão entrelaçadas, o que dá ao filme o seu tom fatalista e cru com relação à existência.

Falando assim, Sangue Negro parece ser genérico, mas não é. Apesar da universalidade da ambição de Plainview, o filme tem um discurso bastante pontual sobre duas forças que geriram os EUA bem como as suas contradições que se apresentam: empreendedorismo e religião. Plainview e o jovem pastor Eli Sunday (Paul Dano) vão brigar pela influência sobre as pessoas do local. É desse embate que Paul Thomas Anderson extrai como, a partir da convivência e do confronto entre essas duas forças, pode-se explicar o ponto a que os EUA chegaram hoje, ou seja, explicar como um conservadorismo se sustenta em um meio em que a competição e a ação individual reinam.

Ambas essas forças querem dominar. É essa a visão polêmica que o filme coloca. Sunday quer fiéis, quer arrebanhar seguidores, quer ser obedecido. Plainview quer manipular para construir mais riqueza. Qual a diferença? Nenhuma, já que os dois se valem de promessas vãs e inconseqüentes para se legitimar. É entre essas duas forças que os EUA se encontram. A essência da religião passa longe da ambição e deveria ser, se fiel às origens, um exercício de humildade e desapego. Ora, quer coisa mais contraditória ao espírito empreendedor, de acúmulo de riqueza pessoal? Nesse meio termo, uma religiosidade hipócrita se mantém sob um discurso retórico, enquanto, na essência, é o espírito empreendedor e competitivo que age. E essa luta é muito bem colocada, com vários rounds, em que cada lado cede, covardemente quando isso corresponde a seus interesses. E é nesses momentos também que a cascas se quebram em cenas arrebatadoras.

Mas por trás de todo esse discurso simbólico, Sangue Negro, apenas como a saga de Plainview já seria excelente. Com uma obstinação sobre-humana ele vai, paulatinamente, se erguendo sobre os demais, construindo o seu mundo cada vez maior, mas sempre vazio. Plainview gosta mais do processo que do fim. É a dominação e o controle que o agradam. E como Daniel Day-Lewis é bom! Sua interpretação, sua entonação, sua caracterização criam uma persona árida, seca, incapaz de ter qualquer relacionamento profundo com alguém e que também se ressente disso. Somente H. W., seu filho adotivo é capaz de lhe proporcionar alguma experiência nesse sentido. À princípio, ter um filho parece ser mais um artifício de Plainview para passar-se por homem íntegro e de família, crucial para sua meta de dominar em um ambiente tradicional e humilde. Mas, no decorrer, o garoto será a materialização da sua falta de trato e isso o atormenta. Sua carência e sede de contato humano, contrários à toda a sua lógica, são colocados em nuances, enriquecendo a personagem.

Paul Thomas Anderson é quase impecável na construção de Sangue Negro. Seu trabalho é completamente desapressado, mas firme. Desde o começo que forja o caráter obsessivo de Plainview com uma longa seqüência sua garimpando prata, sozinho em um poço, passando pela brilhante condução dos diálogos, Sangue Negro é um cinema feito para ser antológico. São inúmeras as outras faces que comprovam isso: a música imprevisível de Johnny Greenwood da banda Radiohead; os planos-seqüência – aqui utilizados mais sutilmente – que tornam mais potentes e mais reais as atuações, as sensações e a ambientação; a atuação soberba dos atores nas entrelinhas e também nas catarses; a fotografia que valoriza a secura e é pautada por um ar apocalíptico. Enfim, Paul Thomas Anderson tem noção da grandeza do discurso do texto, do poder das personagens e, com sua habilidade, molda isso até o nível do memorável. 

Sangue Negro é um épico de um homem só que se desenvolve para várias linhas, seja como metáfora dos EUA seja como um estudo da ganância humana. Ele tem, em suma, o tema, a amplitude e o olhar direcionado dos grandes e atemporais filmes.

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