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Sangue Negro

(There Will Be Blood, 2007)
8,2
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A história do Cinema sendo feita diante de nossos olhos.

9,5

Em 1997, Paul Thomas Anderson surgiu como uma das grandes promessas do cinema americano ao esculpir uma pequena obra-prima chamada Boogie Nights. A promessa revelou-se em certeza quando realizou Magnólia, um filme de temática semelhante ao anterior, apresentando diversos personagens no melhor estilo Short Cuts. Logo em seguida, Anderson dividiu a crítica com o também ótimo Embriagado de Amor, o que fez com que desse um tempo antes de seu próximo projeto. Pois a espera valeu a pena.

Adaptado pelo próprio Anderson a partir do romance Oil!, de Upton Sinclair, Sangue Negro acompanha a trajetória de Daniel Plainview, um ambicioso explorador de petróleo. O filme tem início com Plainview trabalhando sozinho em busca de riqueza e dá um salto até o início do século passado, quando, já um empresário bem-sucedido, ele descobre um poço de petróleo no rancho de uma simples família. Disposto a enriquecer, Plainview parte para o local, conquistando o apoio dos moradores a um preço que, descobrirá mais tarde, é muito alto.

Sangue Negro é outro um exemplo da magnífica capacidade cinematográfica de Paul Thomas Anderson. Mais do que apenas exibir o talento de seu realizador, é uma obra ousada em suas pretensões, um épico devastador sobre a insanidade e a ganância que faz lembrar, muitas vezes, o clássico Cidadão Kane. A coragem e – tão impressionante quanto – a segurança de Anderson transparecem em cada cena, a começar pela opção em realizar os primeiros quinze, vinte minutos praticamente sem diálogos. Ali, Anderson já joga os dados. Sabe-se que o que vem em seguida não é algo comum e o espectador que não for absorvido por este início dificilmente apreciará o resto de Sangue Negro.

Mas é impossível não ser hipnotizado pela categoria de Paul Thomas Anderson. Seu domínio sobre a narrativa é completo, com cada detalhe pensado não com o objetivo de agradar a platéia, mas de construir uma grande obra cinematográfica por si só. Isto fica bem claro no silêncio dos primeiros minutos, quando surge o primeiro grande destaque de Sangue Negro: a trilha sonora. Composta por Jonny Greenwood, do Radiohead, a música incidental do filme é forte e por vezes incômoda, oscilando entre a ópera e o tom macabro. A inconstância é perfeita, refletindo o tumultuoso interior do protagonista e pontuando as transformações pelas quais ele passa.

E Sangue Negro é Daniel Plainview. Ainda que apresente de maneira interessante o processo da exploração do petróleo no início do século e tenha outros personagens bem desenvolvidos, a obra é, em sua essência, um profundo estudo sobre um único personagem. É uma jornada rumo ao coração tortuoso de um ser humano abjeto. Daniel Plainview é, desde já, digno de entrar na galeria dos grandes personagens do cinema, ao lado de criações complexas como Charles Foster Kane (a comparação se faz novamente), Michael Corleone e Travis Bickle.

O protagonista de Sangue Negro é um poço de contradições, cuja personalidade fascinante é desnudada pouco a pouco por Anderson e pelo impecável trabalho de Daniel Day-Lewis (sobre o qual falarei mais adiante). A princípio, Plainview é apresentado como um homem ambicioso, mas a certo ponto confiável e sério. Charmoso, inteligente, o protagonista, convence os moradores da pequena cidade e até o espectador de que é a opção certa para a extração do petróleo do local, ainda que seja perceptível o fato de que ele esconde algo.

Pouco a pouco, a máscara de Daniel Plainview vai caindo e as camadas do personagem são reveladas. Inescrupuloso, o protagonista é capaz de utilizar uma criança com o único objetivo de conquistar a simpatia de seus interlocutores. O desejo pelo poder é outra de suas características e Plainview demonstra fazer qualquer coisa para consegui-lo. Isto fica claro na reveladora cena na qual impede o jovem Eli de abençoar o poço, pelo simples motivo de mostrar quem tem o controle ali.

Mais do que isso, Plainview não tem apenas o objetivo de enriquecer. Como ele próprio afirma, o que o move é a competitividade. Ele precisa de um adversário, para que possa sobrepujá-lo e derrotá-lo, da maneira que achar adequada. Tal necessidade é captada e expressa com perfeição nos momentos finais do filme, quando, após anos sem enfrentamento, encontra nova oportunidade de humilhar alguém. Vem daí, também, uma explicação plausível para sua veemente recusa a Deus: se o Todo Poderoso existe, ele é infalível, e Plainview não aceita existir algo ou alguém mais poderoso do que ele.

O tema religião, aliás, é aspecto importante de Sangue Negro. Representada por Eli Sunday, personagem de Paul Dano, a fé é objeto de repulsa por parte de Daniel Plainview e centro do duelo de forças e inteligência travado pelos dois personagens. Eli é mais do que parece à primeira vista, tornando-se o verdadeiro antagonista de Plainview ao confrontá-lo e, de certa forma, derrotá-lo na cena do batismo. Esta, por sinal, é um dos momentos mais fortes do filme, uma seqüência contundente e eloqüente, que acrescenta novas camadas ao personagem principal. A estupenda atuação de Daniel Day-Lewis atinge o ápice nesta cena, onde é possível perceber a luta interior de Plainview ao se submeter àquela humilhação. O protagonista se diminui diante de pessoas que despreza simplesmente para aumentar seu poder.

Este ódio pela humanidade é exposto em outro momento revelador. Na conversa que tem com Henry, Daniel Plainview abre-se pela primeira e única vez durante todo o filme. A complexidade e riqueza do personagem aumentam ali, pois compreende-se a necessidade que ele tem de encontrar alguém, o que acredita ter achado na pele de seu irmão. Seu relacionamento com HW, ainda que traga certas demonstrações de afeto, é diferente, uma vez que Plainview sabe que o garoto não carrega seu sangue. Com Henry, é diferente. Plainview assume ser alguém com uma natureza semelhante à sua e é diante dele que baixa sua armadura para revelar sua natureza. Isto acrescenta tons de compaixão, em mais um nível da complexidade do personagem.

A esta altura, já deve ter ficado clara a profundidade e o cuidado com os quais Daniel Plainview é construído. Sangue Negro é a sua jornada rumo à loucura e um personagem difícil como este necessita mais do que um ator competente, mas de um grande intérprete para conseguir compor todas estas nuances. E, neste sentido, não poderia haver melhor escolha que Daniel Day-Lewis. Ator riquíssimo em artifícios, Day-Lewis é um daqueles profissionais que gostaríamos de ver mais em tela, vide que sempre oferece interpretações marcantes, normalmente até melhores do que os filmes em questão (seu Bill de Gangues de Nova York é um exemplo).

Em Sangue Negro, Day-Lewis, dedica-se com unhas e dentes para a construção de um personagem fascinante e único, levando os trejeitos, voz e expressões de Plainview ao limite do caricato. Mas sua compreensão do personagem é tamanha que mesmo as caras e bocas transmitem veracidade e em momento algum o espectador duvida de que a personalidade expansiva não faz parte de Plainview. Brilhando em cenas pontuais (como o já citado batismo) e no desenvolvimento do personagem como um todo, Day-Lewis é o agente que torna a queda ao inferno de Plainview real e desoladora, além de fabulosa de acompanhar, resultado também de cenas que beiram a comicidade pela sua insanidade.

A quantidade de vezes em que Paul Thomas Anderson caminha no precipício é alta. Seja nas liberdade para a interpretação de Day-Lewis ou mesmo nos tais momentos cômicos, ele sabe qual é o limite e faz Sangue Negro caminhar sempre por ali. É preciso domínio completo da arte para conseguir tal façanha e Anderson é incrivelmente bem-sucedido. Seu controle sobre ritmo, enquadramento, atuações e cada detalhe ganha vida na tela. Percebe-se que é um filme concebido e executado por um diretor que conhece os personagens, a técnica e a melhor forma de contar a história.

Desde o princípio sem diálogos até a ambigüidade da última frase, Sangue Negro conta com um sem-número de planos elegantes e cuidadosos. Sem pressa, Anderson desconstrói o seu protagonista de maneira faustiana, envolvendo o espectador nesta viagem na qual Daniel Plainview vende sua alma ao diabo por um pouco de poder. Anderson rege sua obra-prima como se fosse um maestro com pleno controle sobre a sua arte.

Ainda assim, desta vez, não há os impecáveis planos-seqüência que abrilhantaram Boogie Nights e Magnólia. Isto não significa, porém, que o apuro técnico de Sangue Negro é reduzido. Há, no lugar, longas tomadas quando necessário e enquadramentos magnificamente elaborados para retirar o máximo de cada cena, deixando cada vez mais clara a personalidade do protagonista. Desta forma, o espectador é brindado com cenas como a de Daniel tomado por petróleo e suas torres queimando, seu reencontro com o filho e o misterioso sussurro que dá a Eli depois do batismo, em um momento com impacto e beleza semelhante à que Sofia Coppola alcançou no instante parecido de Encontros e Desencontros.

Mas Sangue Negro ainda possui outras inúmeras qualidades. O espectador mais atento certamente encontrará uma série de simbolismos no filme, outra característica do cinema de Paul Thomas Anderson. Idéias como colocar Daniel Plainview coberto de petróleo e a surdez de HW possuem significados mais sutis dentro da história, enriquecendo ainda mais o roteiro e a direção de Anderson. Quem quiser ir mais a fundo pode, ainda, encontrar uma mensagem política: Plainview pode ser visto como o inescrupuloso Estados Unidos, disposto a qualquer coisa por um pouco de petróleo.

No entanto, Sangue Negro não deve ser visto como uma alegoria política, e sim como uma história irrepreensível de um homem rumo à sua própria perdição. Profundo, ousado e extremamente ambicioso, o filme de Paul Thomas Anderson consegue hipnotizar o espectador por duas horas e meia, envolvendo-o em termos visuais, racionais e emocionais. Sangue Negro é um fascinante estudo de personagem, um mergulho primoroso no lado negro da ganância e nos cantos mais recônditos do coração humano.

É a história do Cinema sendo feita diante de nossos olhos.

Comentários (3)

Marcus Vinícius | segunda-feira, 04 de Fevereiro de 2013 - 01:25

Ótima crítica para um filme realmente genial. Fiquei impressionado de ver tantos 6,0 dos editores, mas respeito a opinião.

Cristian Oliveira Bruno | sexta-feira, 22 de Novembro de 2013 - 14:20

Daniel Day-Lewis é um exemplo de ator. Conheci ele como John Proctor em As Bruxas De Salém e não tenho vergonha de dizer que aquele foi o único filme que me fez chorar até hoje quando ele grita no lago \" \'cause it\'s my name!!!!\". Virei fã na hora!

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