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Críticas

Cineplayers

Pasolini e o pesadelo do poder.

10,0

O derradeiro filme de Pasolini situa a base da história Os 120 Dias de Sodoma, de Marquês de Sade na Itália fascista, onde quatro homens do alto escalão da sociedade, um duque, um bispo, um magistrado e o presidente torturam até a morte dezoito jovens, isolados na cidade de Saló nos últimos dias do Estado fascista de Benito Mussolini.

Os filmes de Pasolini da década de setenta parecem querer unir ambos os caminhos que já havia seguido - o neo-realismo de segunda geração dos primeiros filmes, o cinema de poesia que idealizara em seu livro “Empirismo Herege”, em filmes livres e simbólicos  realizados na segunda metade dos anos sessenta – primeiro com a chamada “Trilogia da Vida”, onde adaptava três clássicos mundiais: o italiano Decamerão, de Boccaccio, o inglês Os Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer, e o árabe As Mil e Uma Noites. Pasolini causou polêmica com eles ao propôr sua reconstituição de uma forma que o recorte desse valor ao sexo, ao humor pitoresco e à “sujeira” nada higiênica pouco abordada por outros filmes.

Usando antigas ruínas italianas como locações e luz natural, seus filmes causaram polêmica ao abordar, como diz o nome da trilogia, a vida em estado bruto; a estrutura episódica, o resgate do imaginário, o abandono da estrutura causal, a libido como protagonista, como transformadora de vidas e detonadora de uma atmosfera geral de comédia anárquica, feita com um espírito contracultural disposto a abordar História e costumes sem tabus. Todos loucos por sexo, interesseiros e com nenhum respeito por instituições, criadores e criaturas do gozo e da decadência capturados pelas lentes.

Para um obsessivo por um cinema livre da narrativa, que adotasse o simbolismo e não o didatismo, o verso e não a prosa, a Trilogia da Vida foi, para um idealista como Pasolini, um sonho pré-capitalista e pré-industrial, fora da ordem da necessidade da demanda, em uma busca incessante pela ordem natural das coisas, como contraponto à atual, artificial e castradora.

A sucessão ao “sonho” da ausência de ordem mandatória e involuntária foi o pesadelo da uniformidade. A singularidade e deformidade eram símbolos do caos para Pasolini, e a localização espacial e temporal de seu último filme. A ordem em Saló existe e não tem limites para a sua imposição. Sua força obriga todos a se curvarem – a construção reta e limpa como contraponto às ruínas destruídas, os líderes e soldados em trajes e roupas sociais que mostram o fervor pela etiqueta, organização e ritualismo – e o seu ataque contra os jovens que não eram donos de seus vícios. Sua liberdade é tolhida pelos respeitáveis homens, que parodiam de forma perversa a educação normal -  as reuniões sociais são para ouvir histórias de violações, o ritual de alimentação coletiva é trocado por dejetos, a nudez é uma vergonha: os violadores estão sempre vestidos para mostrar sua civilidade frente a jovens forçadamente impelidos ao bestialismo e, mais tarde, ao abate. Jocosamente, chegam a se auto intitular os verdadeiros anarquistas, por serem os detentores do poder e com ele terem a oportunidade de satisfazer todas as  suas perversões.

Em seu artigo “O Fascismo Eterno'', Umberto Eco teoriza sobre o germe do fascismo, sua simbologia, o seu anseio por união, força, a exclusão dos estranhos e desajustados, a eterna guerra paranoica contra inimigos que querem minar suas forças. O fanatismo por um estado de coisas inviolável. Como contraponto, o dever do cidadão livre, mantenedor de uma democracia, de indicar, revelar e tomar como uma tarefa a resistência à restrição de liberdade. O cinema de poesia de Pasolini parece ter igual vontade de escapar da ordem absoluta, adotando uma estética individual, um primitivismo estético que o pensamento industrial consideraria pouco sofisticado, quando não sujo, feio e ofensivo. Não há histórias ou pathos; a emoção depreendida é aquela vinda da contemplação de símbolos de vida e morte, prazer e dor. O desenvolvimento conservador da indústria é criador de um pensamento afirmativo, de propaganda. O primitivismo estético de Pasolini, herdeiro do neo-realismo, identificado com os cinemas novos visam desmontar a narrativa, eliminar a artificialidade, abandonar o velho pensamento de montagem causal. Não há uma continuidade propriamente dita no filme, mas antes um aglutinamento temático – versos sobre um mesmo assunto que funcionam de maneira cíclica para a criação de efeito e impressão.

Porque o pensamento uniforme da indústria é uma instituição – e em Saló, instituições são uma ameaça. Pasolini teoriza no “Empirismo Herege” que o autor de cinema tem de tornar o caos uma espécie de signo expressivo e individual, e Saló faz por investigar a mentalidade de um fascismo que não dormiu, que persegue e massacra outro ideologias. Os jovens são a representação de uma resistência orgânica, não intelectual, a uma autoridade dona de uma retórica persuasiva e castradora. Se na Trilogia da Vida a castração era um antagonista escondido, que você poderia trapacear e, de certa forma, ignorar e viver sob seus próprios termos, nos corredores de Saló a ordem venceu e o caos perdeu e todos estão sujeitos aos donos da ordem.

Saló contesta a narrativa por não se mover em linha reta, mas como o  próprio filme denomina seus episódios, em “círculos” (sendo que o pensamento industrial odeia o filme circular – e idolatra o filme linear). Sendo obviamente, de  certa inspiração dantesca, O Anteinferno, O Círculo das Manias, O Círculo da Merda e O Círculo do Sangue, com sua grande gama de perversões catalogadas séculos antes por Sade como provocação ao absolutismo francês, não são administrados por demônios, mas por militares, religiosos, governantes e aristocratas. Figuras sem nome, que mesmo que mortos irão sempre ressurgir enquanto o poder existir e for da competência de poucos.

O detentor do poder contra o oprimido destituído é o manifesto antifascista de Pasolini, que ao longo de sua carreira filmou uma Itália de paradoxos, fascista, capitalista e camponesa ao mesmo tempo, em constante atrito: ansiosa pela modernidade e pelo progresso ainda que o mesmo seja atropelado e fanático incapaz de assistir aos seus filhos mais necessitados, em conflito entre ouvir o povo, atender seus anseios, ou utilizar-se de uma força elitista, exclusivista e injusta. Em sua técnica simples, propositalmente primitiva e observativa e não pretensa detentora da ética e do julgamento, sua busca por liberdade mostrou a perversão de um corpo derrotando a libertação de um – sua liberdade sujeita a uma autoridade que quer regular, domar e ordenar.

E o filme Saló é um reflexo disso, um clamor pela desobediência à ideia unificadora, uma tentativa de conquistar a liberdade através do cinema, da construção dos seus próprios símbolos, uma advertência contra os perigos da ideia de pertencimento à uma força única, superior, sempre propensa aos desmandos de indivíduos que almejam o poder acima de tudo, seja para negar o mesmo e subverter a ordem, sempre dispostos a ajustar-se às necessidades para que sua retórica continue dominante.

Com sua estrutura e abordagem, o caráter abertamente simbólico recria essa leitura do fascismo onde educação é castração e é preferível punição pelo desajuste do que adequação, a “lavar as mãos”. Por isso nos é cobrado distanciamento, com os longos planos que descrevem torturas sádicas, cheias de prazer contrastando agonia sufocada, uma liberdade que é negada a alguns diariamente. Depois de um tempo observando a dominação, seus elementos e fundamentos, suas aplicações em grafismo alternado com monólogos cínicos, encara-se a estética moderna pregada como a um convite ao ideal de luta ampla, geral e irrestrita de experimentar quebras de paradigmas, que fechados, sempre serão absolutos. E o cinema, se for absoluto, sempre será uma prisão.

O início da chamada “Trilogia da Morte”, jamais completada já que a polêmica do filme vitimou o cineasta poeta em circunstâncias ainda não explicadas até hoje, marcou gerações como um filme repulsivo, terrível, frequentando a lista de filmes mais perturbadores devido à enorme degradação física e psicológica experimentada por seus personagens durante a obra. Se na Trilogia da Vida tínhamos a ausência de restrição em sua visão de construção de ótica, aqui em seu pólo negativo temos a restrição como a grande ferramenta de dominação. Pode ter ficado famoso como denúncia política, mas sua importância como manifesto estético ainda é sentida nos dias de hoje. Difícil mesurar outra incisão tão profunda sobre o dilema entre a prisão uniforme e a fuga pessoal e individual.

Comentários (22)

Marcelo Leme | segunda-feira, 09 de Fevereiro de 2015 - 22:40

Vi Saló uma só vez logo após ter lido o livro. Já faz tempo. Depois desse texto me senti obrigado a revisitar o filme.

Baita texto!

Diego Henrique Silveira Damaso | terça-feira, 10 de Fevereiro de 2015 - 00:20

Me fez repensar verdadeiramente todo o filme. Cada coisa que você infere que eu sequer sonhava. Pasolini é foda. Brum é foda. Um puta texto.

Caio Henrique | terça-feira, 10 de Fevereiro de 2015 - 00:44

Mas Brum, para Berlim Alexanderplatz uma crítica com o mesmo número de caracteres que este não seria nem de perto apropriado. No aguardo desde já meu caro.

Adriano Augusto dos Santos | terça-feira, 10 de Fevereiro de 2015 - 11:50

Pasolini é fascinante.
Mesmo nas constantes quedas de ritmo,sempre há elementos que criam interesse.

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