Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Retratos em branco e preto.

8,5

Para o artista brasileiro Sebastião Salgado, o fotógrafo é aquele que desenha com a luz. Para o cineasta alemão Wim Wenders, é impossível filmar um fotógrafo, sem que o ato se torne, invariavelmente, uma forma de também ser captado e absorvido pela lente deste. Em uma das primeiras cenas de O Sal da Terra (The Salt of the Earth, 2014), a câmera acompanha Salgado até o momento em que ele se vira e a fotografa de volta, revelando mais tarde a imagem de Wenders por detrás dela, numa colisão belíssima do cinema com sua irmã mais velha e matéria-prima, a fotografia. Não é a primeira vez que o cineasta alemão explora a imagem cinematográfica estática de forma a evocar sua origem fotográfica, vide o momento síntese de seu cinema, quando o reflexo da criança se mescla com o retrato que ela acaba de tirar em Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974). Também não é a primeira vez que ele acompanha atencioso um personagem vagando mundo afora em busca de um momento ou lugar que justifique ou faça valer sua existência, e ao conhecer sobre a vida e obra do grandioso Sebastião Salgado o cineasta viu materializado em carne em osso, na vida real, a figura de um homem que até então ele só pensava existir na ficção de seus filmes.

Wenders sempre foi atento e curioso com relação à arte de seus ídolos, de modo que procurou ao longo da carreira intercalar documentários sobre a visão de mundo deles, tal como nos casos dos ensaios sobre as obras de Nicholas Ray, Samuel Fuller, Yasujiro Ozu, Michelangelo Antonioni, Ry Cooder, Blind Willie Johnson e Pina Bausch, entre outros. Paralelo a isso, a fotografia sempre esteve entre os temas-chave de sua filmografia, a exemplo do próprio Alice nas Cidades, de Um Truque de Luz (Die Gebrüder Skladanowsky, 1995) e de Palermo Shooting (idem, 2008). O Sal da Terra vem, nesse contexto, como um filme não somente espetacular e ímpar em sua carreira, como também essencial, já que Sebastião Salgado reúne em si muitas das ideias e conceitos de interesse de Wenders. Se, a julgar pelos seus últimos documentários, em especial Pina (idem, 2011), pareceu cansado dentro do formato do gênero, aqui ele reencontra com a ajuda de Juliano Ribeiro Salgado o melhor de seu cinema.

Sebastião Salgado é mineiro, formado em economia, e fotógrafo por escolha e vocação. Acima de tudo, é um observador sensível do mundo que o rodeia, suas formas, cores, luzes, sombras, sentimentos, histórias, motivações e estruturas. O que começou como hobbie se tornou a razão de viver quando ele notou que, por intermédio da fotografia, poderia captar frações de segundos que contêm todo um universo de realidades. Perseguido pela ditadura, partiu para a Europa, onde largou uma promissora carreira de economista para viajar mundo afora ao lado da esposa captando imagens de anônimos, pessoas muitas vezes esquecidas em situações que todos preferem fingir que não conhecem. Atravessou a América Latina de ponta a ponta, acompanhou momentos de horror e barbárie em países africanos, cobriu no Kuwait a tumultuada Guerra do Golfo e por fim retornou ao Brasil para cuidar do pai idoso, onde acabou redescobrindo seu amor pela natureza e ousando mudar, a essa altura do campeonato, o foco de seu trabalho para fotografia ambiental, chegando posteriormente a partir para Galápagos em busca das mais exóticas e raras espécies do planeta.

O que fascina Wenders nisso tudo, assim como o espectador, é o senso estético apurado de Salgado na composição de seus quadros, e como ele consegue a partir disso extrair um sentimento profundo e tocante a ponto de emocionar qualquer pessoa. É a essência mais pura e honesta da fotografia, do cinema e da arte em geral que comove e atrai tanto na obra de Salgado e, por conseqüência, na obra de Wenders e Juliano, e por isso o filme se sustenta tão bem mesmo diante de tantos focos, visto que vai do formato biográfico, passando pelo fator humano retratado nos cliques da fase social do fotógrafo, até uma mensagem final de homenagem e ode à natureza e ao planeta, pincelada por um leve tom amargo nas resoluções sobre a crueldade da espécie humana. A narrativa dividida entre os dois diretores e o homenageado proporciona visões distintas e amplas sobre cada assunto discutido, e cada um desses assuntos recebe a atenção e o aprofundamento necessários por conta disso.

Ao vagar tantas vezes por uma Alemanha devastada e dividida do pós-guerra, Wim Wenders sempre foi o cineasta que se equilibrou entre a beleza e a amargura, a nostalgia e a esperança, atrás de imagens e de pessoas que sozinhas retratassem um pouco dessa angústia e curiosidade pelas quais se sente movido. Ao ter contato com a obra de Sebastião Salgado, é como se essa visão se expandisse a nível mundial, e este documentário vem como um tratado apaixonado e límpido sobre o poder da imagem, seja ela estática ou cinética, e sobre esse mundo que se sustenta, para o bem e para o mal, nas diferenças e discrepâncias (tal qual os contrastes de luzes e sombras essenciais para a composição da foto), na diversidade das pessoas – pessoas estas que, segundo o filme, formam juntas o sal da terra.

Comentários (2)

Gian Couto | segunda-feira, 13 de Abril de 2015 - 21:16

To muito curioso com esse. A mostra de fotos ano passado foi sensacional.

Faça login para comentar.