Entre a coragem e a picaretagem, enfim um filme com culhões em Hollywood.
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7,5
ANÁLISE COM SPOILERS
Michelle acaba de terminar tudo com o namorado pelo telefone, recolhe suas coisas e parte em busca de uma vida nova. No meio do caminho sofre um acidente de carro, acorda horas depois e se descobre trancafiada em uma espécie de bunker, a muitos metros abaixo da superfície. Seu carcereiro (ou talvez raptor?) se identifica como Howard, e diz que a trouxe para lá numa tentativa de salvar sua vida, visto que do lado de fora o mundo inteiro jaz sob o efeito de um suposto ataque nuclear/químico/extraterrestre súbito, que dizimou a vida humana. A princípio crente de que está nas mãos de um lunático perturbado, tudo muda de tom quando surge na trama um terceiro personagem, Emmett, outro “prisioneiro” que garante que toda a história contada por Howard é verdadeira.
Diante do impasse, Rua Cloverfield, 10 (10 Cloverfield Lane, 2016) se posiciona a frente de uma bifurcação: ou segue pelo caminho de um típico thriller de confinamento focado em acompanhar as tentativas de fuga de Michelle, ou abraça a hipótese paranormal latente e se revela como uma atípica ficção-científica travestida. Mas existe um terceiro fator de importância nessa equação: trata-se de uma continuação de Cloverfield - Monstro (Cloverfield, 2008), um filme independente de grande sucesso, filmado no estilo found footage, sobre a cidade de Nova York sendo invadida por um monstro de origem desconhecida. Ora, como essas duas histórias tão distantes podem se ligar?
O que nem todos sabem é que, a princípio, Rua Cloverfield, 10 não foi concebido como uma continuação e sequer tinha alguma coisa a ver com o filme de 2008, tanto que não há nenhum ator, diretor, roteirista ou membro da equipe técnica em comum. Quem teve a ideia de unir o útil ao agradável foi J.J. Abrams, o produtor executivo e mente pensante que procurava um meio de tornar aquele roteiro absurdo em algo comercialmente viável. Para isso ele recorreu à uma picaretagem old school de Hollywood e pegou carona no sucesso que o nome do filme de 2008 tinha e deu um jeito de forçar uma conexão. A sacada foi tão boa que Cloverfield passou de pequeno clássico contemporâneo a uma espécie de possível franquia não bem desenhada ainda, mas que gira em torno de uma invasão à Terra, explorada a partir de diversas histórias paralelas que ocorrem simultaneamente em filmes diferentes, com alguns núcleos conversando vez ou outra de um filme para o outro, como numa antologia sci-fi vintage, com o tempero de cinema escapista oitentista que somente J.J. Abrams consegue administrar atualmente.
Mas a grande beleza de toda a ideia está na coragem que o trabalho assume quando diante das duas possibilidades citadas acima. Um suspense básico ou uma ficção-científica alucinada? Na dúvida, os roteiristas deixaram qualquer receio de lado e escolheram os dois caminhos, fazendo de Rua Cloverfield, 10 o milagre de dois filmes em um. Em proporções infinitamente reduzidas, podemos comparar essa ousadia ao que M. Night Shyamalan fez em A Vila (The Village, 2004). Na obra-prima do indiano, logo de cara lança-se a possibilidade da existência de um monstro vivendo na floresta que rodeia um vilarejo de poucos habitantes. Habilmente, o diretor ora confirma a suspeita, ora a desmente, ora a resgata, ora a refuta, num jogo de perspectivas sufocante que culmina numa ruptura narrativa corajosa e arriscada. Rua segue por um caminho parecido, ficando à mercê das pistas contraditórias deixadas pelo personagem de John Goodman, até chegar a um gran finale em que Michelle finalmente escapa do bunker, mas inevitavelmente ainda tem que enfrentar o segundo filme que nasce a partir daí, uma ficção-científica que enfim se confirma e vem com tudo para o arremate final, depois de quase uma hora e meia do mais tenso suspense de confinamento.
Simples, eficiente, arriscada, a fórmula funciona graças a uma direção vigorosa e um entrosamento muito natural entre o trio principal. Rua Cloverfield,10, mesmo abusando da licença poética e metendo os pés pelas mãos vez ou outra, pelo menos peca pelo excesso, nunca pela falta, e dá a cara a tapa em meio a produções americanas cada vez mais acomodadas e acovardadas dentro de uma zona de conforto que enjoou faz anos. Se isso tudo serviu apenas de picaretagem para resgatar o filme de 2008 e transformá-lo numa franquia, como a cena final parece indicar, que venha então mais capítulos nessa história maluca que existe apenas porque o cinema comercial em sua melhor forma possibilita existir.
Gostei do seu ponto de vista, Heitor! O final até hoje me deixa indeciso, porque por um lado eu achei que fez sentido dentro da proposta (e me fez concluir que a Michelle estava fudida em ambas as possibilidades), mas também senti que houve um exagero e um claro interesse comercial... Mas se foi o único jeito dessa história ir pro cinema, então apoio a tomada dos riscos 😲
No que pese algumas soluções fáceis no último ato, Cloverfield é diversão acima da média para o padrão atual americano
Texto bom, mas A Vila, obra-prima do Shyamalan... 😐
PQP, conseguiram estragar como poucas vezes vi um filme em 10 minutos. Uma das bombas do ano, sem dúvida.