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Críticas

Cineplayers

Para quem ama o Cinema.

9,0

Evocando o espírito cinéfilo de cada um, Woody Allen encontra-se aqui plenamente aconchegado no mergulho que sua obra faz na fantasia, desapegando-a do plano real e edificando-a no mais belo sonho. Com isso, sua protagonista torna-se uma definição do que somos na verdade: amantes da Sétima Arte; que vibram, se divertem e se comovem diante de uma tela em projeção. Allen extrai a magia de cada fotograma e a expressa através dos profundos e comovidos olhos de Cecília, sempre transbordados de pura emoção, por ventura da sensação particular e inconfundível de se assistir um filme.

A sala de exibição torna-se o escapismo de uma vida melancólica, desnutrida de afeto e companheirismo por parte de seu parceiro e transtornada por conta do período caótico em que vive (Grande Depressão Americana). Ir ao cinema é transportar sua alma dos problemas terrenos e flutuar de acordo com a sinfonia das cenas transparecidas em tela. Cecília relega tudo que a aflige assim que atravessa a porta do estabelecimento; ao se acomodar na poltrona e deixar que sua mente seja magnetizada pelas imagens e sons que exalam daquele imenso cenário, ela acompanha o trajeto da obra que assiste e, à medida que a duração se esvai em minutos, seu transe se intensifica ainda mais.

Em uma sessão repetida do mesmo filme, essa hipnose de Cecília é quebrada quando um personagem da película, surpreendentemente, pausa a exibição por um momento e declara seu amor e admiração por ela, que assiste aquela obra já pela quinta vez. Ele sai da tela imediatamente para interagir melhor com aquela figura por quem se apaixonou à primeira vista, e em um impulso, ambos fogem daquela sala, deixando os demais personagens do filme e os pasmos espectadores para trás. O cineasta faz com que essa fantasia impossível seja o fio que conduz a trama de seu filme, e aquele amor que floresce entre a humana e a criação ficcional seja a efígie da liberdade dos dois. Ele, da tela que tange a ficção da realidade; ela, da vida amarga que enfrenta fora daquele lugar.

Allen não procura explicar como Tom Baxter (Jeff Daniels) conseguiu atravessar sua dimensão e se implantar no mundo real, e não era preciso, pois as pequenas sutilezas de seu texto (e muitas vezes da imagem) fazem crer que foi por razão de seu sentimento, que abriu uma passagem improvável para que ele pudesse conhecer de perto sua amada. Nesse ponto, o diretor estabelece um equilíbrio perfeito entre sua proposta metalinguística, criando uma sintonia mágica entre fantasia e realidade, amor e amargura, em uma atmosfera singular de leveza e graça. Essa textura imaginativa não é um elemento somente da obra em questão, uma vez que Woody Allen a fez inerente em diversas ocasiões (a exemplo de Todos Dizem Eu Te Amo [Everyone Says I Love You, 1996], Noivo Neurótico, Noiva Nervosa [Annie Hall, 1977] e o mais recente Meia-Noite em Paris [Midnight in Paris, 2011]) para construir um vínculo perfeito entre a admiração do sonho e o gosto do despertar.

Mia Farrow, ex-parceira do diretor, desenha um semblante frágil, delicado à Cecília, construindo em sua face uma expressão sempre abatida, porém otimista a respeito do virá pela frente. De forma doce, a protagonista é introduzida em um conto de fadas, que parece abduzi-la de sua existência infeliz. Ela, como a sofredora princesa; Tom, como o príncipe galante; e o filme, como o cavalo branco que conduz o herói até seus braços. É comovente sentir a felicidade transbordada por cada um dos gestos dela, quando está ao lado daquela figura protetora, auxiliadora e fantástica. Por ser deslocado nesse mundo, devido a sua inocência em relação aos assuntos exteriores, Tom Baxter dá vida à admiração incondicional de Cecília, a ponto de não querer envolvê-lo em seus problemas reais - sua tristeza profunda, seu marido agressivo.

E todos esses agravantes que impedem a alegria dela são belissimamente ilustrados não apenas pelo criativo roteiro assinado por Allen, mas também pela fotografia e direção de arte que entendem bem a proposta do cineasta. A melancolia do cotidiano daquela mulher é sugerida por tonalidades acinzentadas, quase monocromáticas, declarando a ausência quase total de ânimo em seu universo. Em contraste, Tom Baxter lhe traz a euforia, pois mesmo que saia de um filme em preto e branco, o personagem é banhado por cores vivas e quentes, e a relação da cinéfila com ele adiciona uma vibração agasalhadora e necessária à vida dela. É isso que faz com que o sentimento recíproco seja definitivo para que os dois se completem, como o sonho e seu sonhador, a ilusão e quem a constrói, a felicidade e aquele que a sente.

Mais que uma homenagem ao Cinema, A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985) é um brinde a todos que aqueles admiram esta forma de expressão artística. Assim, Woody Allen compreende como poucos o espírito dos cinéfilos, a satisfação que lhes toma ao assistir uma fita - repetida ou inédita - numa sala de projeção, ou em qualquer mídia possível. Ser cinéfilo é encarar o filme como passaporte para um mundo sempre novo, inédito, aberto a possibilidades infinitas. Enxergar com os mesmos olhos de Cecília é compreender que a Sétima Arte será eternamente capaz de nos oferecer as mais distintas e absolutas sensações. Com o encerramento de seu filme, Allen decodifica esta mensagem, através da simples expressão de sua protagonista, que mesmo abalada com o que acontecera, guarda consigo um brilho em especial nos olhos, símbolo que declara que não importa o que venha a acontecer no mundo exterior, pois dentro do cinema, ela sempre será capaz de sonhar.

Comentários (11)

Vanessa Soria | sexta-feira, 16 de Setembro de 2011 - 15:15

Adorei a crítica! 🙂

Júnior Souza | sábado, 17 de Setembro de 2011 - 00:52

Obrigado a todos! 😋

Douglas R. de Oliveira | domingo, 18 de Setembro de 2011 - 12:58

O Júnior Souza já é um dos melhores críticos do CP! E ele tem a minha idade, kkkkkk Parabéns, crítica muuuito boa, o meu 4º favorito do tio Woody!!! 😉

Jairo Simões | segunda-feira, 17 de Dezembro de 2012 - 11:23

Não consegui dar menos do que nota 10 para este filme. Procurei um motivo, mas não encontrei. Acho que é porque Cecília é meu alterego!😁 Uma homenagem aos cinéfilos. Maravilhoso!!!

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