Fellini fez de Roma uma amostra do fenômeno atemporal hoje chamado de "indústria cultural".
"É esta a cidade das ilusões.”
Gore Vidal, no filme Roma, falando sobre a capital italiana.
É certo que, entendido como uma obra de arte, um filme jamais é simplesmente um discurso literal, mas sim uma narrativa simbólica que lida com valores e concepções de mundo. Federico Fellini sabiamente detinha esse conhecimento, estava ciente da profundidade semântica que poderia alcançar com a linguagem audiovisual, e assim o fez, explorando possibilidades artísticas e de significações em todos os seus filmes. Com sua proposta estética inventiva, acabou por criar uma própria sintaxe audiovisual, fez da gramática de seu cinema um marco. Prova cabal é recorrer ao dicionário de diversas línguas e encontrar lá o termo “felliniano”.
Conhecidos como delirantes, oníricos, ou mesmo doidos e malucos, em Roma talvez Fellini tenha concebido seu filme mais “malucão”, para ficar em um dos termos coloquiais. Esse seu longa-metragem de 1972 tem uma proposta pouco usual no cinema: não há uma trama narrada linearmente, tampouco um protagonista. Ou melhor, há sim uma personagem central, e esta é, justamente, a cidade de Roma. O objeto do discurso no filme é o espaço urbano, mas mais especificamente a profusão de símbolos e seus significados, o sincretismo entre as mais variadas formas de expressão e como elas afetam e constituem o ambiente e a vida dos homens organizados em sociedade. E como os símbolos são os alicerces de uma esfera fantasiosa que forjou o modo como o homem sente e entende o mundo.
Cartazes de filmes, imagens religiosas, políticos, mulheres nuas, sexo, hippies, sacerdotes, gastronomia, tradição, arquitetura... é nesse caldeirão cultural, nesse celeiro polifônico que é a cidade de Roma, que Fellini irá se debruçar e oferecer ao espectador a experiência simbólica da cidade, apresentando ao seu modo os diferentes códigos e sistemas - e como, por vezes, os homens estão fadados a serem ludibriados por ilusões da comunicação. Artes, desenho, símbolos; mito, folclore, religião, comportamentos; ritos, festas, dança, performances; teatro, cinema, rádio, televisão; moda, urbanismo, design; poesia, música, canção, literatura; jornal, publicidade, marketing. Interessante notar como signos da cultura erudita e da tradição italiana mesclam-se com o pop, com o supérfluo, o gratuito, assim como já havia feito Jean-Luc Godard, assim como Quentin Tarantino estava por fazer.
A forma como todas estas idéias e conceitos são apresentados compromete-se pouco com a lógica, está mais para um fluxo de consciência à lá Joyce/Falkner do que para uma narrativa aos moldes do cinema clássico. Num primeiro momento, há chegada de um jovem à cidade. Se em Os Boas-Vidas e Amarcord Fellini trazia a melancolia em deixar para trás a vida e a cultura do interior, aqui o diretor celebra a chegada a metrópole, a excitação, a agitação cultural, o prazer pelo novo, pela experiência cosmopolita – e o jovem é, evidentemente, seu alterego. Roma, que o escritor norte-americano Gore Vidal em pessoa define no filme como a cidade das ilusões. Vidal diz: “é uma cidade, antes de tudo, da Igreja, do governo, dos filmes. Todos fabricantes de ilusões. Eu também sou, assim como você. Que lugar melhor que está cidade que já morreu tantas vezes, e ressuscitou tantas vezes para ver o verdadeiro final através da poluição e da superpopulação? Parece-me o lugar perfeito para ver se acabamos ou não.”
Brincando com essa idéia de ilusão do cinema, trazendo essa reflexão sobre o caráter ludibriante da sétima arte, Anna Magnani, a atriz estrela do clássico do cinema Neo-Realista italiano Roma, Cidade Aberta, aparece interpretando a si mesma neste filme justamente homônimo ao filme que lhe rendeu fama. E mais: aparece dialogando com o próprio Fellini, chamando por seu nome, ele presente atrás da câmera. Raros os momentos em que o cinema brincou com essa relação entre estrela e cinema, vida real e vida na tela, o que leva a crer que possivelmente tenha sido uma grande influência para Cidade dos Sonhos, de David Lynch, e A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen. Além de ter sido influenciado por Crepúsculo dos Deuses, seja pela abordagem que faz da cidade das ilusões (naquele caso, em L.A. - Hollywood), seja por trazer estrelas do cinema interpretando a si mesmas no filme.
Porém, a sequência mais enigmática e curiosa do filme refere-se a um comentado “desfile de moda eclesiástica”, ou seja, um fictício desfile de trajes para o pessoal do Vaticano. Os modelos apresentados são uma série em casulas, murças, mitras, estolas e sobrepelizes, que como afirma o narrador do evento, um bizarro mestre de cerimônias, “tudo fabricado numa vasta variedade de estilos, materiais e cores, com a garantia de que não desfiam.” Ao longo do desfile, nota-se o comentário de um espectador no espaço diegético que assim diz: “o mundo deve se adaptar a igreja, e não o contrário”. Essa afirmação está perfeitamente consonante com a mensagem do mestre de cerimônias, quando ao afirmar que tratam-se de vestimentas com “a garantia de que não desfiam”, refere-se metaforicamente a idéia de que estes trajes são robustos e imponentes o bastante para intimidar e sugerir a autoridade e o poder no contexto cultural e toda sua volatilidade instríseca, uma medida nítida tomada pela instituição frente as mudanças de tempos, com hippies e jovens, com novos valores, novos comportamentos (inclusive sexuais, que vão de encontro com a igreja), e que com isso geram uma nova expressão indumentária.
O que Fellini quer evidenciar aqui com o seu cinema é que as ações são tomadas não somente no campo das atitudes tangíveis (como pela força ou repressão oral), mas pelo discurso imagético e persuasivo das imagens – neste caso, as vestimentas clericais. Um dos semioticistas e estudiosos que mais enfaticamente se lançou a um estudo sério sobre o poder comunicacional da indumentária foi o francês Roland Barthes. Em seu livro “Sistema da Moda”, o mais importante no assunto em toda a bibliografia sobre semiótica, Barthes traz um estudo aplicado à significação induzida pelo discurso imagético do vestuário. Acreditava que as lacunas encontradas na história da indumentária que examinou deviam-se ao fato de terem sido produzidas em um momento em que a historiografia ainda não havia estabelecido relações entre vestuário e fatos da sensibilidade, algo que salta aos olhos e serve de mote ao filme Roma.
Este evento (e o próprio filme) tem seu ponto crucial e catártico com a aparição de um senhor de idade, sentado em seu trono, no alto de um altar, com um cajado (tal como o Deus declamado nos salmos 23 e 91) e todo envolto por adornos dourados, com a luz emoldurando sua presença sobre-humana. A luz e o dourado (o ouro) carregam os significados de riqueza, prosperidade, poder e divindade. Interessante perceber como Fellini não apenas mostra o desfecho do desfile, mas a catarse das pessoas ao verem-se diante de imagem tão esplendorosa, como que uma prova do poder de persuasão da imagem e de como esta legitima o poder, além de toda a aquiescência que as imagens proporcionam na audiência. Com exemplos evidentes assim, fica claro perceber o porquê, ao longo da história, a luta de classes também foi, de certo modo, uma luta de vestuários, cada uma identificável a sua maneira. E por que o mundo é constantemente hipnotizado pela persuasão do mundo das imagens e sons em movimentos – mundo que em nenhum momento Fellini faz questão de se excluir ou redimir. Aliás, brinca com isso.
Bela crítica... essa parte do desfile eclesiástico é genial mesmo, chorei de rir com o padre pisca-pisca
Filmaço! Ousadíssimo, e apesar de ser um filme difícil, se fosse um pouco mais curto (dava pra cortar até uns 20 min ali) acho que estaria sim entre os grandes filmes dele.