O faroeste colorido não tão faroeste assim de Otto Preminger.
Este texto comenta passagens importantes do filme,
então leia por sua conta em risco ou apenas depois de assisti-lo.
O Rio das Almas Perdidas é um faroeste diferente. Ambientado perto do encerramento da fase dourada do western norte-americano, Otto Preminger realiza uma deliciosa salada com o gênero. Tudo está no lugar: os índios, os tiroteios, os cavalos, o duelo, os famosos saloons, um local pacato que é afetado com os acontecimentos da história... Mas, ao mesmo tempo, não é nem um pouco faroeste: ainda que flerte com todas estas características clássicas, é sobre a relação entre um filho e seu pai, sobre passado e presente, sobre perdão e vingança. O western e todo o seu charme nada mais são do que pura ambientação para contar uma história que vai um pouco mais fundo no coração de seus personagens, entendendo-os e expondo-os.
Durante a famosa corrida pelo ouro nos Estados Unidos, no final do século XIX, Matt Calder (Robert Mitchum) reencontra o jovem filho, que há muito tempo não via, e passam a viver juntos em sua tranqüila cabana. Quando um jogador e sua mulher, a cantora de bar Kay Weston (Marilyn Monroe), quase se acidentam no perigoso rio ao lado, Matt descobre que ambos estavam querendo alcançar uma cidade para registrar uma nova mina de ouro. Ao se recusar a ajudá-los a terminar a viagem, tem seu cavalo e sua espingarda roubados, deixando Matt, Kay e seu filho vulneráveis aos ataques dos indígenas. Não restando escolha, os três navegam pelo rio para tentar fugir em uma jornada que todos sabem que não terá volta.
Utilizando Technicolor e Cinemascope, Otto Preminger dá um show na captação de imagens e fotografa algumas belíssimas paisagens, desde a simplicidade e a paz das cenas da cabana até a ação no rio, feroz e convincente. Tecnicamente, é uma pérola realista do início ao fim, sejam pelas belíssimas locações (filmado em reservas do Canadá), pelos figurinos sujos e usados, ou pelas interpretações naturalistas em diálogos bem escritos e lotados de uma profundidade ímpar. O Rio das Almas Perdidas é um filme feliz na pele, mas dolorido e rancoroso por dentro. Mas, apesar disso, é tão bonito e bem apresentado que, mesmo sabendo dos perigos que rodeiam os personagens, nos remete a acompanhá-los, apenas para poder apreciar aqueles maravilhosos locais.
Nenhum destes personagens, aliás, é inteiramente feliz. Tome por exemplo Matt: ao mesmo tempo em que diz com convicção que não há problema nos índios queimarem sua casa, afinal, eles conseguiram fugir e podem construir outra, é um homem que coloca tudo o que tem a perder por causa de sua vingança ao cara que destruiu a tranqüilidade que tinha com o filho. Tem pose de galã valentão, mas perde pelo menos duas lutas ao decorrer do filme, humanizando-o e tirando um pouco daquele ar de ‘invencível’ que os mocinhos de faroeste costumavam ter. Matt é um homem comum, com virtudes e fraquezas mais visíveis do que estamos habituados nos mocinhos do gênero.
Seu filho não consegue aceitar de maneira alguma que o pai passou anos preso por ter atirado em um homem pelas costas, quebrando a imagem endeusada que tinha por ele. Porém, nas ironias da vida, acaba tendo que atirar pelas costas de alguém para salvar a vida do pai, fazendo-o entender um pouco melhor a atitude aparentemente asquerosa que Matt havia realizado no passado, aproximando os dois e fechando o arco dramático que circundara o filme depois que a revelação é feita. O pequeno também é vulnerável à ferocidade do meio em que vive, chegando a ser alvejado pelos indígenas em certo momento, colocando realmente em dúvida se aqueles personagens conseguirão cumprir seu objetivo.
Já Marilyn Monroe, costumeiramente erótica, de pernas de fora e olhar sedutor (perceba a expressão de desejo quando Matt faz massagem em suas pernas!), constrói uma Kay ao mesmo tempo valente e frágil. Disposta a largar tudo pelo homem que lhe promete um futuro longe daquele monte de beberrão dos saloons, não consegue enxergar um palmo a frente (ou não aceita) que aquele homem está longe de ser o ideal para se viver ao lado. De um jeito rústico e quase Neandertal no modo de se relacionar com Matt, ambos vão se aproximando e, mesmo que não admitam, parecem formar uma família muito mais convincente do que com Harry, o jogador. Marilyn protagoniza também algumas das cenas mais bonitas e tranqüilas do longa, quando pega seu violão e toca para o público.
Longe de ser perfeito, fica difícil de acreditar que os índios nunca fizeram uma real investida contra a casa de Matt, perante à veemência de segui-lo pelo rio com vários membros, inclusive depois que ele consegue um rifle para se defender – teoricamente, o que os mantinha afastados da cabana. Mas em um mundo onde o mocinho pode surrar e ser surrado, isto é pouco quando a obra é gostosa de se acompanhar e marca justamente pela aparente simplicidade que esconde profunda relações por aqueles que vivem na tela. Merece ser visto pelo que é e pelo que se tornou ao longo destes anos: um road movie aquático ambientado no final do Velho Oeste, mas com espírito de vivência e aproximação de pai com seu filho – e muitos irão se identificar justamente com isso.
Mais do que o conteúdo, é sobre o que se sente assistindo e o que é oferecido. E, nesse sentido, O Rio das Almas Perdidas tem vantagem a gozar de sobra. Engraçado ter saído uma fita tão boa de um mero cumprimento de contrato - tanto Otto quanto Merilyn odiavam o roteiro e o fizeram apenas por obrigação. Sorte a nossa.
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