Argento celebra o fim do mundo através da caoticidade das mulheres modernas em um legítimo filme B contemporâneo.
O Retorno da Maldição - Mãe das Lágrimas é tão romântico no que diz respeito ao seu próprio universo e imagens que em certos momentos muito mais se assemelha a um turbilhão errático de Ferrara do que a um filme apocalíptico fantástico italiano – a cena do banho de Ásia Argento e seu primeiro encontro com a mãe são dignas do Cinema do ítalo-americano -, mas isso de maneira alguma representa uma possível troca de identidade de Dario Argento. Pelo contrário, é conseqüência da lucidez.
La Terza Madre, o filme, veio ao mundo como complemento às duas partes anteriores da mitologia de Argento sobre as três bruxas – Mater Suspiriorum, Mater Tenebrarum e Mater Lacrimarum – mas em nenhum momento procura remeter, em estrutura ou discurso, aos anteriores Suspiria e Mansão do Inferno. Ao contrário do que havia feito anos antes em Sleepless, uma releitura do giallo setentista sob a ótica do cinema daquela época, Argento filma através das características cinematográficas do século XXI sua visão do filme B moderno, um termo que na realidade se perdeu entre diferentes definições e hoje representa muito mais qualidade do que forma – vale resgatar que filme B é uma definição utilizada desde o período do sistema de estúdios hollywoodiano e era utilizada para denominar os filmes feitos para passar na aba das superproduções, já que não tinham estrelas nem publicidade suficientes para conseguirem se vender sozinhos.
Como um legítimo filme B, Mãe das Lágrimas é paupérrimo do ponto de vista técnico, preenchido por efeitos bastante ruins se comparados a qualquer produto cinematográfico atual – os elementos digitais jamais foram companheiros do diretor, o que pode ser notado também em Síndrome de Stendhal – e feito com baixíssimo custo, da mesma forma como qualquer outro filme de Argento. Mas os tempos são outros, e na visão de Dario este é o universo do verdadeiro filme B contemporâneo, sem o jogo de luz e o misticismo que marcaram sua fase mais celebrada e recheado de poluição visual. É o tempo da globalização, do engarrafamento, da correria, do coletivo à frente do pessoal – assim como o filme, o primeiro da trilogia que se passa fora da esfera mitológica da mansão construída para a bruxa, fixando junto ao drama pessoal a histeria social.
Não é nenhuma coincidência, portanto, que ao contrário dos protagonistas anteriores, a personagem de Asia Argento seja muito mais do que uma simples curiosa pela mitologia – diferentemente da garota de Suspiria e do paspalho que assume a comissão de frente na metade final de Mansão do Inferno, Asia não escolhe participar de toda a loucura, entra no jogo simplesmente para salvar o mundo. Afinal, estamos aqui para resolver uma trindade mitológica, ninguém melhor do que ela – a grande definição da heroína moderna e ao mesmo tempo a maior vampira do século XXI – percorrendo uma elegia à própria espécie para dar o ponto final ao apocalipse promovido pelas mulheres.
Foram poucos os cineastas que olharam com tanto carinho aos seus heróis, e Argento faz isso de maneira tão surpreendentemente romântica que alcança um tom de ternura absoluto em certos momentos, contrastando com a vastidão do feitiço macabro lançado pela Mater sobre uma Roma em devaneios – e propulsora de alguns dos momentos de morte mais intensos e sangrentos da filmografia diabólica de Argento. Asia alcança a invisibilidade, é protegida pelo espírito materno, recebe pistas de outro mundo e até se permite um banho pra lá de sensual debaixo do manto de morte e sangue que cobre a cidade, momentos antes de partir para a batalha definitiva na mansão de orgias escatológicas que serve de quartel para seu algoz, recheada de bruxas seminuas e moçoilas peitudas.
Dario Argento, em Mãe das Lágrimas, não apenas conclui sua trilogia como também quebra a barreira entre o cinema fantástico da década de 1970 e o apocalipse estudado pelo cinema do século XXI. Mais do que isso, bebe de fontes externas para voltar sua mitologia à adoração em diferentes esferas. Assim como Abel Ferrara em Enigma do Poder e Olivier Assayas em Traição em Hong Kong, Argento celebra o caos sentenciado pelo corpo feminino mas defende em sua plenitude a grande mistificação da mulher contemporânea, pelo bem ou pelo mal.
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