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Resgate

(Extraction, 2020)
6,6
Média
95 votos
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Críticas

Cineplayers

Extração: título digno de uma estreia brutal

7,5

Extração. O cinema é uma linguagem que, como todas as outras, se comunica por diferentes signos, incrustados em todos os aspectos de sua forma e conteúdo. Do alto de seu status de arte, é desejável que esses aspectos dialoguem entre si de maneira harmônica (existe harmonia até mesmo quando uma obra investe no caos) em cada detalhe de um produto cinematográfico. Por isso, desde a exibição da cartela do título original de Resgate (Extraction, 2020), não houve um momento em que essa palavra tenha saído da minha cabeça: extração.

Talvez porque essa palavra, esse pequeno detalhe, represente a maior crítica que eu tenha a fazer sobre o novo longa-metragem da Netflix. Uma crítica construtiva à Netflix Brasil: que pense mais e melhor a adaptação de um título original para o português brasileiro. “Resgate” exprime um sentido básico muito aquém do que vemos nesse filme. Por isso o diretor Sam Hargrave e o roteirista Joe Russo preteriram a palavra “rescue” e apelaram para “extraction”. Termo que representa um processo de salvamento que recusa negociação, pagamento ou a primeira noção de resgate que nos vem à mente. Extração pressupõe a remoção de algo à força. Extração pressupõe sangue, pressupõe dor. Resgate, não. Por isso, um erro. Sintetiza mal o filme em questão.

Extraction é feito com mais que sangue e dor; é feito com suor, fraturas, poluição e odor. Nos corpos de seus personagens, nas sensações que eles têm e no que podemos testemunhar pela paisagem que os cerca. Seja pelo ar denso de poluição de Daca, encenado com o auxílio de uma fotografia amarelada que evoca calor, gordura e sujeira, seja com uma fuga pelos esgotos da capital de Bangladesh, com direito a ratos nadando em cena. Isso é cinema. Não basta o personagem dizer que a merda fede; nós, espectadores, precisamos ver para sentir e acreditar que aquela merda fede. Ponto para Sam Hargrave, Joe Russo e toda sua equipe de direção de arte e fotografia. Além de tudo, emulam muito bem a estética caótica e violenta da obra original de Ande Parks, uma graphic novel que faz jus a esse status de romance gráfico.

Mas não é só de cenários precários ou nojentos que se constrói a narrativa pulsante de Extraction. Na verdade, seu principal elemento é outro: suas cenas de ação. Que porrada! são essas cenas. Existe um movimento em curso em Hollywood de promoção de dublês para a função de diretor desde que Chad Stahelski (John Wick - Um Novo Dia Para Matar, 2017) e David Leitch (Atômica, 2017) dirigiram juntos De Volta ao Jogo (John Wick, 2014), e Extraction é a prova de que tanto John Wick está se transformando em um dos filmes mais influentes de sua geração, como que esse movimento vem refrescar o gênero — no caso, derrubá-lo com uma pedrada para transformá-lo. Sam Hargave é um estreante na direção de longas-metragens e sua estreia é uma baita surpresa.

Da franquia John Wick, Extraction se inspira nas boas coreografias de luta e, principalmente — veja só —, de manipulação das armas. Esses dois filmes funcionam como um verdadeiro balé tático de atiradores especialistas. Mérito também de Chris Hemsworth (Thor, 2011) e do indiano Randeep Hooda, que, assim como Keanu Reeves, demonstram uma movimentação tática militar e uma habilidade com armas absurdas. Mira, atira, recarrega, joga o fuzil no chão, saca a pistola, mata mais um, outro, acabam as balas, pega a faca, parte pro corpo a corpo — tudo com uma agilidade, uma espontaneidade e uma brutalidade absolutamente verossímeis. É impossível não se envolver com um thriller de ação assim, tão vibrante e tão visceral.

O outro aspecto que contribui para esse dinamismo enérgico são os planos-sequências do filme. Aliás, peço licença para lembrar algo curioso: eu analisei recentemente por que John Wick funciona bem como um longa-metragem que adapta a linguagem dos games numa comparação com 1917 (idem, 2019), que eu enxergo como uma obra que, em muitos momentos, explora esse elemento de forma insípida, e porque a narrativa parece a serviço de sua forma e não o contrário, como deve ser. Pois bem: Extraction é um filme que combina os elementos principais dessas duas obras inspiradas nos jogos em primeira pessoa com muita competência. A câmera junta ao corpo do protagonista e as sequências de longa duração são, ao mesmo tempo, um desbunde do ponto de vista da execução e eletrizantes em termos de efeito. O bloco imenso do filme que encena a extração de Ovi (Rudhraksh Jaiswal) como um grande plano-sequência é excelente. E inteligente: revendo o trecho, notei que a sequência é um retalho de inúmeros cortes rápidos, muito mais que o habitual, sem comprometer o efeito desejado, de continuidade.

Resgate (me rendo ao título brasileiro só dessa vez) é também um indício de uma boa temporada dos irmãos Joe e Anthony Russo na produção de filmes de ação — gênero bastante carente de bons títulos. Vide o lançamento recente, há apenas 7 meses, de Crime Sem Saída (21 Bridges, 2019), também realizado pelos irmãos diretores mais bem-sucedidos do Universo Cinematográfico Marvel (Capitão América: Soldado Invernal, 2014, Capitão América: Guerra Civil, 2016, Vingadores: Guerra Infinita, 2018 e Vingadores: Ultimato, 2019). Em comum, o fato de serem thrillers de ação urbanos livres das amarras do Estúdio do Mickey. Outra coincidência entre eles é o papel importante que pontes bloqueadas pela polícia exercem em ambas as tramas. Como diferença principal, o fato de esse novo lançamento ainda se valer do roteiro de um irmão Russo, e por isso ser um filme melhor — apesar das críticas que vi por aí.

De fato, não há nada particularmente incrível no texto de Extraction. Por exemplo, você lembrará de Rambo (First Blood, 1982) e tantos outros filmes de exército de um homem só lançados nos anos 80. Mas também há muito mérito ali. Como o fato de ser um filme com dois exércitos de um homem só. De ser uma trama intrincada em que o contratante é também o antagonista até não mais ser. De saber movimentar essas peças para fins dramáticos, assim como ao conferir humanidade aos seus personagens. De mostrar a família de um vilão para dar peso à sua motivação e retratar o protagonista como um anti-herói viciado em Oxicodona. De fazer uma piada esperta comparando Chris Hemsworth com um galã de outra geração com que se parece na produção. E apesar do contrapeso de um chefão de drogas malvadão (construção péssima, principalmente no clímax final) e de cenas melodramáticas de gosto duvidoso. Extraction se vale das cenas que dão peso ao seu título original expressivo, brutal. Como o fato de conter, possivelmente, a melhor cena de assassinato do cinema em 2020.

Comentários (2)

Robson Oliveira | sexta-feira, 01 de Maio de 2020 - 15:39

Filmaço, se busca ação de qualidade vá sem medo!

Ted Rafael Araujo Nogueira | sábado, 02 de Maio de 2020 - 19:31

Excelente texto bicho. Massa a curtição com os termos que tu propuseste. Do filme não posso comentar nada. Ainda o verei.

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