5,0
O Phineas Taylor Barnum da vida real foi um pioneiro do entretenimento, para o bem e para o mal. Para o bem, foi pioneiro na divulgação do circo pela América, empresário, filantropo, escritor e até mesmo político. Para o mal, também foi acusado de fraudes, expôr pessoas como aberrações, maus tratos a animais e racismo. Na média, é uma das pessoas que primeiro souberam usar publicidade para autopromoção, com o objetivo de erguer seu próprio império de entretenimento com atrações que divertiam da classe operária à burguesia.
O P. T. Barnum de O Rei do Show, por sua vez, é uma figura bem-intencionada, um pai amoroso, que luta o preconceito contra os excluídos e cujo único defeito é a grande paixão que tem pelo trabalho. É o que o leva de uma vida miserável à condição de grande magnata da diversão, onde agrega pessoas diferentes e discriminadas - a mulher barbada, um anão de voz grossa, um homem coberto de tatuagem, acrobatas negros - que não conseguem emprego pelo extremo preconceito da época, e passa a alçar voos mais ambiciosos, contratando o ator Phillip Carlyle e logo após passando a agenciar a soprano Jenny Lind.
Dirigido pelo estreante Michael Gracey, que até então trabalhava em efeitos visuais e em departamentos artísticos de obras na Austrália, sua primeira oportunidade estreia com luxo, com um elenco de peso e os compositores Justin Paul e Benj Paek, vitoriosos no Oscar por La La Land - Cantando Estações. A ascensão, queda e redenção de Barnum por suas lentes vem da primeira e última cena como um espetáculo celebratório na medida certa para o grande público do século XXI.
O roteiro de Bill Condon (Chicago) e Jenny Bicks (Rio 2) não se interessa nas polêmicas que cercaram a vida de Barnum e pouco faz para explorar o ofício do circo. É constante a reclamação de que em musicais os diálogos irrompem em números coreografados, mas por muito tempo parece que o circo é mais um detalhe informativo para explicar como Barnum enriqueceu, pois o pano de fundo do mesmo limita-se à introdução de mestres do picadeiro e exibições dos acrobatas, e que mesmo assim pouco destaque ganham para si. Os números pulam de uma cena a outra, eliminando quaisquer maiores motivações.
E o problema disso é que ao contrário de filmes de Vincente Minnelli, como Sinfonia de Paris ou A Roda da Fortuna, O Rei do Show tem uma dramaturgia um tanto esvaziada - a personagem Charity, constantemente sorridente, imensamente compreensiva e com pouco a fazer na trama além de aprovar e reprovar o protagonista não recebe grandes cuidados do roteiro. Com uma atriz de peso como Michelle Williams no elenco, não há peso ou convicção nenhuma na interpretação. Charity é uma esposa-troféu, unidimensional e perfeita como um conto de fadas.
Só há um personagem de fato em O Rei do Show, e esse é P.T. Barnum. O Philip Carlyle de Efron surge como o mesmo personagem com menos tempo de tela; ele precisa confrontar o preconceito da sociedade (incluindo seus pais) para ficar com a acrobata Anne Wheeler. Fora isso, ambos se amam em uma perfeita história de amor, com momentos de tensão, paixão e sorrisos que não evoluem daí. Seu personagem inclusive parece roubar tempo de tela de Barnum, pois é rigorosamente parecido com a trama principal, só que com um tratamento mais superficial.
E como a mesma coisa pode ser dita do elenco do circo - são basicamente um grande personagem interpretado por vários atores, se alegram e se entristecem em conjunto, entram em conflito em uníssono, não têm dinâmicas exploradas entre si -, resta apegar-se à figura de P.T. Barnum, que segue a cartilha básica das cinebiografias: seja em Ray, Johnny e June, A Teoria de Tudo, O Jogo da Imitação ou em O Rei do Show, a estrutura é invariável: um começo difícil, o primeiro hit, os defeitos pessoais trazendo a queda do personagem, a chance de redenção. Fim do filme antes que o espectador questione o que aconteceu depois ou o que o roteiro teria deixado de fora.
Decerto o cinema tende a repetir mitos, e a indústria do cinema por sua vez tende a repetir modelos. Se estamos contando sempre a mesma história, muitas das cinebiografias contam sempre a mesma narrativa. Não é apenas a semelhança nas ferramentas utilizadas: o molde ao invés de ser quebrado virou matriz de cópia. O Ray é um Alan Turing com teclados ou Alan Turing é um Ray com computadores, tanto faz; e P. T. Barnum é mais um desses personagens excelentes no que fazem, com suas falhas morais mas ainda assim pessoas dignas de nota.
Gracey ainda parece um tanto intimidado com o poder de sua câmera, e descarta muito dos poucos elementos visuais que consegue criar através de composição - como o interessante plano ponto de vista de Barnum onde ele observa o lugar onde ele trabalha ao lado de um cemitério e cria-se a primeira associação com a vontade do protagonista não querer ser um indivíduo ordinário. O uso da (super) câmera lenta também gera alguns momentos de dramaticidade tensa bem pontuados, mas sua linguagem é tão sabotada quanto a concepção musical.
Isso porque Gracey poucas vezes ao longo da uma hora e quarenta e cinco minutos de filme preocupa-se com a composição como citado acima, desvinculando o poder do balé entre dançarinos e câmera. Restam muitos cortes sem razão de ser, coreografias que perdem muito do seu encanto ao serem decantadas em pequenos fragmentos que falham em criar a sensação de um organismo vivo, como acontecem em grandes filmes que envolvem coreografia (musicais, artes, marciais), com a montagem tentando dar ritmo a um filme vazio em drama e pouco pensado em matéria de concepção visual.
E as músicas, uma das razões de ser de filmes musicais, também falham em evocar o clima de virada de século, apostando basicamente em música popular contemporânea ao espectador, como a soprano Jenny Lind cantando uma “ópera” que basicamente assemelha-se às power ballads de hoje. “This Is Me”, a música entoada pelo trupe do circo, tem um refrão contagiante e uma mensagem representativa, mas talvez também seja a epítome de músicas derivativas ao gosto de uma geração dominada por programas de auditório e reality shows de cantores hiperafinados e mais que hábeis em cantar músicas cheios de subidas, descidas e interlúdios.
O Rei do Show acaba como um remendo do que há de mais atrativo no cinema musical para conseguir um filme inteiro. Cinebiografia típica e romantizada, músicas virtuosas mas sem muito chamariz ou diferencial próprio que seja, uma constelação de estrelas apostando que conseguem cobrir todos os gêneros em papéis unidimensionais que pouco fazem além de repetir os arquétipos do gênero.
Tudo está lá, com cada setor esforçando-se tanto para criar um filme onde tudo seja impressionante que no final das contas nada é muito impressionante. Justamente porque sem mãos hábeis e uma cabeça compondo por trás, o gênero cinematográfico servindo como muleta para atrair um público que supostamente se satisfará com os clichês, e não como uma via de expressão artesanal satura muito rápido. Nós todos já sabemos o que esperar, e os produtos perfeitos e obedientes logo se desvanecem. E assim, com todo o seu luxo, O Rei do Show esqueceu de trazer qualquer carisma.
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