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Críticas

Cineplayers

Uma pérola imperdível, para um público inteligente. Mirren e a direção de Frears são ambos maravilhosos.

8,0

Para quem não sabe, vale o aviso. Apesar de o filme se chamar A Rainha, ter como personagem principal a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, o filme é mesmo de Tony Blair, o Primeiro Ministro trabalhista que chegou ao poder depois de 18 anos de governos conservadores, sendo a maior parte deles com Margareth Thatcher à frente, a Dama de Ferro, um ícone do que hoje se chama neoliberalismo (privatizações em especial).

O diretor, Stephen Frears, e seu roteirista, o dramaturgo Peter Morgan, são trabalhistas convictos – Frears, então, um dos mais conhecidos anti-Thatcher da Inglaterra. Ambos já haviam feito um documentário, para a televisão, sobre a chegada do primeiro ministro ao poder e de como ele conseguiu o respeito da rainha para implementar as reformas, além de ter estancado o declínio da monarquia depois da morte da princesa Diana.

A tese é simples. A monarquia, recatada e avessa a vulgaridades, demorou a entrar na era da comunicação e da globalização, da sociedade do espetáculo. Hoje se espera de seus governantes grandes discursos e ações espalhafatosas, mesmo que inócuas. Discrição e galhardia envelheceram. Daí entra o primeiro ministro, que soube conduzir, naquele momento crítico, a morte de Diana, a monarquia para que as massas pudessem se locupletar da perda do maior símbolo mediático da Inglaterra moderna, Diana, a Princesa do Povo.

Com uma atriz em estado de graça, a câmera do brasileiro Afonso Beato na fotografia, figurinos austeros de Consolata Boyle e um roteiro de falas precisas, quase cirúrgicas, Frears fez um filme admirável, tão leve e despretensioso que só os mais inteligentes conseguem ser. Não há cena desperdiçada: todas têm alguma coisa a dizer – e bem ditas, pois o filme é calcado no que os britânicos têm de melhor, seu teatro, na técnica do playwriting inglês da cascata de diálogos feitos para fundamentar os personagens, e nunca apenas gerar efeitos de impacto. Dá para pensar que o cinema retomou a sátira política, que desaprendeu a fazer (ou não se interessa mais em realizar) e a atualizou aos nossos tempos.

Dame Helen Mirren está ótima. Estudou os gestos e os dosou com perfeição. Seu balançar de braços, a maneira de andar, os pequenos acentos da cabeça, tudo beira o genial. É a consagração de uma carreira dedicada a bons filmes e excelentes atuações. Ela foi a mulher em O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, de Peter Greenaway, no qual, depois de ter o amante assassinato, manda assá-lo e obriga o marido comer o pênis. Fez também o pornô-chique Calígula, de Tinto Brass, e posou nua, aos 60 anos, em Garotas do Calendário. Venceu Cannes com As Loucuras do Rei George (na qual interpretou outra soberana), num duelo de interpretação com John Gieguld, e esteve inesquecível como a mãe desnaturada de Assassinato em Gosford Park, de Robert Altman. Isso para ficar apenas na sua carreira no cinema, pois também é premiada atriz de televisão e, claro, de teatro, de onde ganhou o título nobre de dama – das mãos da própria rainha que agora interpretou.

Mirren brilha; vê-la atuando é um dos grandes, se não o maior, prazer do filme, entre tantos que a obra oferece. Mas o restante do elenco não nega fogo, em especial Martin Sheen, como Tony Blair, James Cromwell, como o príncipe Phillip, e Helen McCrory, hilária como Cherie Blair, a mulher anti-monarquista do primeiro ministro. Frears é excelente diretor de atores. Ensaia-os e conversa longamente com todos antes das filmagens. Seu método já levou uma constelação de atores a executar suas melhores performances na tela.

O filme é francamente a favor da monarquia e não poupa elogios à rainha Elizabeth, o que gerou críticas a Frears. É o único flanco a se atacar no filme, sua posição ideológica, uma vez que como diversão de classe é imbatível. Tony Blair, como Thatcher, foi reeleito duas vezes, mas não conseguirá terminar o terceiro mandato – ao que tudo indica, renunciará em favor de seu ministro das finanças, Gordon Brown, no próximo ano. O que derrubou o então mítico primeiro ministro, o príncipe da chamada Terceira Via, ou social democracia (no Brasil perseguida tanto pelo PSDB quanto pelo PT) foi sua aliança com George Bush e o apoio da Inglaterra à guerra inventada pelos EUA contra o Iraque.

Ou seja, A Rainha é uma pesquisa dos primeiros momentos do governo trabalhista de Blair (gloriosos, que lhe garantiram permanência longa e prestigiosa) e indica, nas entrelinhas, que foi picado pela famosa mosca azul do poder, “apaixonando-se” pela rainha (sugere-se que ele a via como sua mãe já falecida), dando uma guinada à direita e sucumbindo às direitadas bélicas e ao conservadorismo. 

Não é preciso ir longe para se ver exemplos como esse. Já se dizia no Brasil, desde a República Velha, que um conservador é um antigo liberal no poder. Foi assim com Fernando Henrique Cardoso. É assim com Lula. Chamam-nos de traidores do povo – é assim que o também cineasta Ken Loach, esquerdista ferrenho, se refere a Blair. A amarga desilusão dos britânicos não poderia ser mais atual para nós brasileiros. Mais uma razão (dentre inúmeras não ditas aqui), para se ver A Rainha.

Comentários (2)

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