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(Rã, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Viagem ao tempo do afeto

9,5

É notável o lugar que Ana Flávia Cavalcanti e Julia Saskia conseguem alcançar desde o início de seu filme, algo não muito comum ao cinema, brasileiro ou não: quase conseguimos tocar . Tátil, expressivo, comunicativo, cálido, são tantas as chaves de proximidade que o filme consegue criar ao espectador com o mínimo de empatia, que nem sei de onde partir. Acho que começa no talento mesmo, para além da emoção clara, que Ana Flávia conseguiu dispor sua própria vivência, e sutilmente resgatar dados e percepções ao reorganiza-los pra fora da sua memória, na tela grande e imersiva. Em muito pouco tempo, aquela casa humilde, cuja goteira precisa providenciar todo um rearranjo doméstico, nos leva pra uma realidade quase documental daquele universo, palpável quase no nível do tridimensional.

Todas aquelas pessoas e ambientes estão em um tempo-espaço outro, o da rememoração, que retoma signos de outra época ("me vê um Continental?") para ativar nossa memória afetiva à da realizadora, que transcreve seu passado auxiliada por Julia pra injetar nas imagens potência humana, estética e de linguagem; o que a força da natureza (chuva) não consegue fazer, um simples esquecimento infantil o faz. O lugar da precariedade é reestruturado pela argamassa afetiva, a compensar as ausências materiais. Se falta segurança concreta, sobra segurança emocional, e com isso todos os remendos possíveis são esquematizados para promover uma estrutura compensatória de onde carece o Estado.

Em um festival repleto de exemplos da sororidade feminina, impressos nos melhores exemplares que passaram por Brasília, coloca em cena uma mãe e suas duas filhas à margem da resolução das macro questões públicas, que tem apenas a si pra prover conforto familiar umas às outras. Desprovidas de uma figura paterna, esse núcleo cheio de explícito calor humano tem na própria Ana Flávia sua figura representativa, como a mãe desvelada que, nas simples expressões que evidencia, ao puxar o rodo, ao esperar a condução enquanto fuma, ao colocar suas filhas pra dormir regadas de um carinho muito real, se arvora por todos os processos filmicos que construíram e representa códigos que estão entranhados no seu DNA.

O trabalho de Ana Flávia e Julia em escrever o roteiro e rodar o filme é uma parceria onde entram as experiências pessoais da primeira e a experiência como diretora da segunda para criar um amálgama de concretude e relevos íntimos que precisariam ir para além do toque e do olhar, mas que emglobassem também a direção de arte, a luz e a recriação conjunta de cada espaço percorrido. Assim, temos a fotografia experiente de Alice Drummond que pode, depois de afagar esse trio de figuras femininas, rasgar o silêncio da noite para um pedido desesperado, e injetar novos códigos imagéticos a essa trama. Também a montagem de Julia e Paula Mercedes permite criar tanto os tempos alargados dos dias quanto a espera insegura da noite.

Rã tem, em paralelo a todos os debates e conceitos da representação social, de abandono masculino nas classes menos favorecidas e da força gigantesca que a mulher suburbana precisa adquirir em prover sua própria existência, exala do filme de Ana Flávia e Julia uma força bruta de comunicação e afeto que arrebata a cada plano, em observar os tijolos que são cama e churrasqueira ao mesmo tempo, na terra que também é carne moída, no medo da escuridão que se transforma em clara alegria, no tempo de ontem que também é eterno.

Crítica da cobertura do 52º Festival de Brasília

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