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Críticas

Cineplayers

Antes, durante e depois de Nathalie.

9,5
Nathalie Chazeaux é professora de filosofia. Escritora. Esposa. Filha. Mãe. Sua rotina aparentemente não a incomoda. Ela dá aulas, consegue construir um misto de empatia, respeito e admiração suficiente em seus alunos que os provocam a não aderir a greves estudantis, almoça com o marido em casa, luta contra o descaso da editora que exige de suas publicações de nicho filosófico uma vendagem que não os cabe, cuida diariamente de uma mãe repleta de distúrbios oriundos de depressão e síndromes adquiridas ao longo de anos, tem uma posição invejável dentre seus alunos e ex-alunos, algo entre a mentora e a inspiração. Quais são as observações de Nathalie a respeito de seu passado, presente e futuro? Quais serão os gatilhos que lentamente serão acionados para que essa rotina, apesar de confortável, simplesmente desapareça? 

Um amigo há pouco tempo observou como o trabalho de Mia Hansen-Løve se assemelharia a uma espécie de discípula de Eric Rohmer, na forma como ela radiografaria o que há de mundano nas relações ao seu redor, por mais espetaculares que elas eventualmente fossem; não sei se concordo com tal pecha, mesmo sendo algo pertinente. Mia sempre avançou rumo a um clima de tensão miúda, um olhar aguçado sobre um universo em mutação, ainda que a seu ritmo todo particular. O que ela faz em O Que Está Por Vir é definitivamente a um só tempo singular, especial e divisor de águas; ainda que sua lente nunca estivesse menos que muito apurada, o passo aqui é na direção da excelência. 

Enquanto também como roteirista ela se supera na intenção de mover sua narrativa sempre adiante, sem cenas vãs, é na direção que a autora mostra crescimento ainda impressionante. Sua mise en scene jamais se resume aos habituais plano/contraplano, plongee ou afins; com uma câmera fluida e lentes a cargo de Denis Lenoir (veterano que tinha trabalhado com ela no anterior Eden), Mia passeia horizontalmente por suas tomadas, em um registro que praticamente suplica uma projeção scope, a fim de captar toda o aspecto aberto que ela consegue tanto em cenários quanto em externas. O espaço cênico é devassado a cada novo passeio de câmera, e Nathalie é seguida como a espreitar algo muito íntimo jogado numa seara espetacular. Todas as tomadas interiores ganham imensidão pelo olhar de Mia, e quanto mais os cenários naturais se expandem, mais a câmera percebe essa necessidade máxima, ao contraponto onde sua protagonista se vê cada vez menos ampla e livre.

Mia e Nathalie, criadora e criatura, não poderiam ter encontrado intérprete melhor que Isabelle Huppert, uma das maiores atrizes do nosso tempo, onde aqui isso fica bem evidente. No que talvez deva ser um dos maiores anos de sua carreira cheia de grandes anos, Huppert brilhou em Cannes com o atropelo de Paul Verhoeven 'Elle', mas antes já tinha passado por Berlim com o filme de Mia. Pois chegamos a conclusão aqui que não há o que ela não possa. De construção diferenciada à Michelle do filme de Verhoeven, sua Nathalie é uma mulher forte, determinada, dona de si e poderíamos dizer até empoderada; a riqueza de Nathalie é que ela não é somente essa típica representante da fauna 'huppertiana', mas também tem sombras emocionais represadas, nada que a transtorne ou deforme, apenas um ser humano com sua trajetória de altos e baixos que fraqueja com os baques, mas segue. O presente que Huppert ganha com personagem tão dentro de seu manancial de excelência mas com pontos específicos em aspectos da humanidade poucos explorados por ela é devolvido de volta pro público, que acompanha os torvelinhos de uma atuação tão precisa e rica que só pode ser conseguida sendo vivida mesmo. 

As atuações que O Que Está Por Vir precisava, as entregas tanto de sua protagonista quanto de seus coadjuvantes (inclusive uma formidável Edith Scob), são exatamente a argamassa não apenas desse longa como da filmografia de Mia, que aqui até chega num patamar ainda superior mas que funciona como uma marca registrada do trabalho dela como cineasta, num processo de constante evolução e entrega. Ainda que aparente uma barriga no terço final, a conjunção perfeita entre o esmero na construção de planos e posicionamento de câmera, na criação de uma personagem tão solar (no que concerne seu poder gravitacional e seu encanto irradiante através da radiografia e da leitura tão exata de uma mulher) e de uma textura cênica que une isso tudo a esse abismo particular que Isabelle Huppert visita tão raramente hoje em dia, e eu não consigo ficar apenas extasiado diante do superlativo abrangente. 

Na verdade é difícil sair indiferente do longa de Mia. Repleto de camadas de construção da memória, cada detalhe da geografia que é o apartamento de Nathalie, que é o seu passado, que são as suas relações familiares e pessoais e que a montam, acaba sendo absorvido e retrabalhado em cada um como espectador a título de também tentar montar um acervo pessoal de lembranças e atividades passadas, todas prestes a se esfarelar. Mia cria um tratado sobre como lidar com as perdas mundanas e viver para prosseguir ganhando e repondo outras situações, pessoas e afetos no lugar. Todos igualmente mundanos. 

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