A idade dos filmes não pode ser medida meramente a partir do ano em que foram produzidos; os filmes surgem também em suas reexibições (coletivas ou individuais) e são convidados a ressurgir por uma cultura apegada a remixes, releituras e pastiches. É preciso ter isso como ponto de partida para ressignificar a nossa relação com filmes "antigos” e escrever sobre clássicos sem perder de vista a sua potencial novidade e atualidade.
"Little Women", de Louisa May Alcott, é um dos livros mais frequentemente adaptados pelo cinema em língua inglesa. Embora a história não seja tão disseminada globalmente, é possível reconhecer sua ambientação básica: quatro jovens irmãs habitam com sua mãe uma vizinhança de classe média baixa em Massachusetts enquanto o pai delas está envolvido na Guerra Civil. É uma parábola de crescimento e também, como define Patti Smith, sobre a conquista de uma liberdade responsável.
Estamos prestes a receber uma nova adaptação do livro dirigida por Greta Gerwig (Lady Bird), o que nos motiva a repensar a força dessa narrativa e a reiteração de alguns de seus temas. A ansiedade contemporânea que mais parece atravessar a expectativa por um novo "Little Women" aparenta ser justamente a afirmação da liberdade responsável de que fala Patti Smith. Mas enquanto olhamos para a sua primeira adaptação, As Quatro Irmãs (Little Women, 1933), o que aparece dessa ansiedade contemporânea?
Dirigido por George Cukor, As Quatro Irmãs se constrói visualmente por um sentimento de agradabilidade que passa também por filmes como Agora Seremos Felizes (Meet me in St. Louis, 1944), de Vincente Minnelli. Há uma contradição interessante nessa escolha de Cukor, porque enquanto Agora Seremos Felizes pode se reafirmar moralmente na ideia de que “é bom viver naquele tempo”, As Quatro Irmãs não podem gozar de semelhante nostalgia. A Guerra Civil é um trauma estadunidense e deve ser encenado como tal (essa é, ao menos, a lógica recorrente do cinema hollywoodiano); então, diante da impossibilidade de nostalgia, Cukor responde com a possibilidade de uma fraternidade restauradora.
Há várias chaves visuais a que o filme recorre para indicar essa congregação futura do país (uma congregação vivida no momento da produção do filme). Existe um pertencimento à identidade estadunidense muito cuidadosamente articulado. Quando Jo (Katharine Hepburn) corre pelo bosque até a sua casa, há a reiteração de um vínculo com o país e com suas contradições ideológicas, com uma natureza que se confunde com a propriedade e com uma ideia de liberdade que se reafirma a partir da branquitude.
Mas a autonomia de Jo é encenada aqui ainda de maneira muito potente. Pensemos que este é um dos primeiros trabalhos de Katharine Hepburn no cinema e o seu primeiro grande sucesso. Há um frescor muito notável de sua atuação aqui, que aparece quase como um prelúdio para o seu papel em clássicos subsequentes como Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938) e Núpcias de um Escândalo (The Philadelphia Story, 1940). Hepburn aqui tem o mesmo vigor desembaraçado pelo qual ficou famosa, mas aqui ele se orienta por outra identificação de classe. Hepburn não atua ainda como a garota privilegiada que precisa ser educada (como sugere o título "Bringing Up Baby" – ou seja, "criando Baby") em direção ao ambiente doméstico, mas sim como uma mulher amparada apenas por seu próprio senso de força e vitalidade, que deve afirmar sua autonomia justamente fora de casa.
Tendo Jo como seu centro moral e afetivo, o filme passeia pelos dramas vividos por suas irmãs com interesse (um interesse que emula, de certo modo, o amplo carinho que Jo sustenta pelas outras). Essa articulação é uma boa escolha de montagem que permite a Cukor passear por um amplo período de tempo com todas essas personagens sem que os saltos temporais tenham um peso no modo como vemos essa história se desenvolver. A carga dramática não está então com um tempo que passa, mas com as personagens que crescem. E, ao recusar um estilo virtuoso, Cukor ressalta esse trajeto sem se prender em determinados pontos do caminho (à exceção de um plano, em que a escolha pela virtuosidade de Cukor se adequa perfeitamente, congelando um momento na vida de sua protagonista).
As Quatro Irmãs é um filme singelo, até frequentemente esquecido, mas um indicador da força não apenas do romance de Alcott, mas da habilidade muito particular do cinema desse período de imaginar universos literários e de desdobrar uma estrutura de sentimento ou um conjunto moral como imagem em movimento. Cukor é um dos nomes menos lembrados entre os autores do período (talvez por não reivindicar a assinatura autônoma que constituiu o legado autoral de tantos outros), mas sua habilidade pode ser testemunhada por todo o período clássico em Hollywood.
Texto integrante da série Vestígios da Era de Ouro
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