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Quando a Vida Acontece

(Was wir wollten, 2020)
6,2
Média
8 votos
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Críticas

Cineplayers

Processo de reconstrução

6,5

Em um rápido exercício mental, talvez não seja tarefa lá muito fácil apontar grandes nomes do cinema austríaco assim, logo de cara. Para os menos habituados com as filmografias originárias desse país tão fronteiriço à Alemanha, é bem provável que o primeiro nome a se engatilhar na ponta da língua seja o de Michael Haneke. Mais adiante, num esforço de memória já mais robusto, peguemos o nome de Stefan Ruzowitzky, responsável pelo premiado Os Falsários (2007). Afora esses e outros nomes, surgem, de vez em quando, pérolas do cinema austríaco que passam despercebidas, dentro das ostras que são alguns catálogos de streaming.

É o caso de Quando a Vida Acontece, adição à Netflix que chegou timidamente e, convenhamos, com uma falta de alarde que já era de se esperar. Em meio a tantos lançamentos robustos da provedora, este é o tipo de filme que se encontra apenas com um garimpo minucioso. Quando se aperta o play, descobre-se um mundo, se não de tamanha inovação, revestido de emoção, mais aquela interna, que não exterioriza, mas é percebida no íntimo do casal central à trama.

Ambos detêm uma perspectiva própria diante de uma dura realidade imposta. Alice (Lavinia Wilson) não consegue, mesmo depois de quatro tentativas, engravidar. Tenta vários procedimentos e o insucesso persiste. O diretor Ulrike Kofler não perde muito tempo com a ilustração do que se encontra na sinopse do filme, a qual resumi neste mesmo parágrafo, e já parte para o que será o cenário de reflexão e aprendizado para Alice e Niklas (Elyas M’Barek). O refúgio onde ambos passarão por uma reciclagem, e essa ideia de reconstruir com elementos mal aproveitados é muito bem explorada pelo texto escrito à duas mãos, é a Sardenha.

Ambientado todo nesse belo cenário, próximo do mar e rodeado de casas aconchegantes para hóspedes mais afortunados, o filme tem uma ótima sacada de utilizar, em quase toda sua duração, apenas sons diegéticos, advindos das ondas do mar, das marés, do vento que sopra. O mesmo ocorre na economia de diálogos, que deixam para o espectador perceber, ter uma experiência sensorial própria com aquele processo, quase uma terapia psicológica para o casal. O filme não é didático e consegue se sair bem ao recusar a narrativa pedagógica.

É um filme de momentos. E não há apenas um casal na trama, há um outro que compõe um belo contraponto para uma dupla protagonista em crise. Nessa outra família, os filhos são, ao mesmo tempo, uma tortura e uma projeção para uma Alice esperançosa, que vê no terreno ao lado aquilo que sempre sonhou para si. Entretanto, também há na família vizinha uma demonstração de pais indiferentes aos filhos, em constantes desentendimentos. Isso vai sendo revelado aos poucos para Alice e Niklas que, inicialmente, enxergam quem está na casa ao lado de uma maneira que segue a máxima do “a grama do vizinho é sempre mais verde”.

Há certo momento em que Niklas tenta mudar de casa no resort em que está hospedado, mas acaba cedendo ao contato e à troca de experiências com os vizinhos que aparentemente têm aquilo que ele e sua esposa ainda não têm. A direção então parte para evidenciar essa troca de ideias, esse enfrentamento que faz aflorar a personalidade, tanto do casal em crise quanto a dos pais de um garoto isolado, deprimido e de uma garotinha simpática que vira um elo sentimental muito bem inserido no filme tanto para o espectador quanto para Alice, que com ela mantém conversas, como na cena em que a menininha a questiona: “Por que você parece sempre triste?”

Ulrike acerta em algumas passagens onde apresenta um ruído de opinião entre o que pensa o casal protagonista e o que pensa o vizinho, em linhas de diálogo corriqueiras, como em um passeio na trilha, uma escalada à montanha, um jantar entre amigos à noite. O cenário todo natural reflete bem como Ulrike trata sóbria e espontaneamente os conflitos de uma Alice que almeja ser mãe e parece nunca conseguir convencer o marido de que persistir nessa busca é uma boa ideia. Niklas é pragmático e, dada passagem, sugere uma simples adoção. Mas Alice não é pura razão. Ela acredita e tem fé que criar um indivíduo é algo não menos que motivo de orgulho. Mesmo com a experiência negativa de incomunicabilidade que ela passa eventualmente com o marido, o que não seria benéfico na criação de um filho, e mesmo com a escola pessimista que é o contato com o casal vizinho, aparentemente feliz com não um, mas dois filhos, que entretanto decepcionam os pais.

Desapontam seus pais, mas também não recebem um devido tratamento deles. Essa é a ideia. Ulrike trabalha na tridimensionalidade, por assim dizer, dos problemas e na bilateralidade intrínseca a eles. De um lado, o casal sem filhos patinando nas divergências e na inconformidade com a não possibilidade de ter um filho do próprio sangue, de outro, um casal que tem essa benção dos filhos, mas que derrapa no trato com eles. Um jogo de perspectivas bem interessante é explorado a partir dessa antítese de estados, dessa antítese anímica e perspectiva entre o que gera o problema num polo e o que gera problema noutro. A dor de cabeça que é não ter um filho dum lado. A tensão e o desgaste que é ter um filho de outro.

Quando a Vida Acontece trata de vida, mas sobretudo do que carregamos nela. Certos fardos no caminho, na trajetória por ora árdua, por ora suave, e sobre como concertar desgastes, aqui em específico os de relacionamento e os de quebra de expectativa. É um filme sobre tentativa de detox mental, com troca de farpas aqui e ali, para um casal amarrado, que precisa urgentemente de um desenrolar para suas tensões, de um alívio.

É também um longa que erra, especialmente quando corta cenas que poderiam durar facilmente minutos a mais. Reitero que a economia faz sim bem ao filme, nas conversas, no visual, na estética, mas às vezes ela vem em demasia. O filme se encerra meio subaproveitado nos ganchos que a própria história deixa pra gerar momentos dramáticos mais contundentes, mais categóricos. Várias passagens são interrompidas quando poderiam agregar ao filme uma reflexão ainda mais poderosa sobre maternidade, vida a dois, fases de pico e fases de vale, pelas quais todos passamos em nossas vidas. Mas é um filme que brilha e chama atenção pela sua eficiência na simplicidade. É tão natural quanto a luz do dia, como diria a canção de Charlie Brown Jr., e tão bonito quanto qualquer período diurno passado à beira mar na Sardenha fotografada em um dia ensolarado, parte de uma decupagem sem floreios, mas bastante sensorial e com algo a dizer. Nesse palco, vemos férias que são um verdadeiro refúgio para que Alice e Niklas possam passar pelo menos por uma primeira etapa de um longo processo de reconstrução.

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