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Críticas

Cineplayers

Por um cinema nacional assumidamente comercial. Desde que bem feito.

3,0

A comédia-romântica sempre foi um gênero negligenciado pelo cinema brasileiro. Talvez por ser considerado algo menor, um escapismo a que os cineastas não poderiam se dar o direito, são raras as produções nacionais que se assumam explicitamente como tal. De uns tempos para cá, lentamente ou não, a coisa vem mudando. O cinema brasileiro parece que perdeu a vergonha de contar histórias com o único propósito de entreter. Qualquer Gato Vira-Lata (idem, 2011), cuja origem é a peça escrita por Juca de Oliveira, de enorme sucesso de público entre os anos de 1998 e 2002, é mais uma tentativa nesse sentido. O texto de Juca, na essência, é uma espécie de combinação de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand (com o sexo dos personagens trocado) e Pigmalião, de Bernard Shaw. Com uma grife dessas, a adaptação para o cinema, ao menos em teoria, era plenamente válida. Quanto à execução, a história foi bem outra...

O filme começa nos apresentando Tati (Cléo Pires). Ela está telefonando para Marcelo (Dudu Azevedo), seu namorado. O rapaz completa mais um aniversário exatamente naquele dia, e Tati pretende fazer daquela noite um ponto de partida para algo mais sério no relacionamento entre os dois. No entanto, as ligações não se completam. No princípio, os recados deixados na caixa postal são carinhosos e apaixonados. À medida que o tempo passa, eles são trocados por mensagens cada vez mais ríspidas. Onde está esse cara que não dá retorno?  Ela resolve deixar a apreensão de lado, escolhe a melhor roupa de seu guarda-roupa, e sai ao encontro do amado. Qual não sua surpresa que, ao chegar no local marcado, Tati flagra Marcelo paquerando descaradamente uma garota. Pressionado, ele resolve encerrar o namoro. Motivo: ela não seria romântica o suficiente. Arrasada, Tati vai chorar as pitangas no primeiro prédio que encontra. Acidentalmente, ela escuta vozes vindo de um auditório próximo. Ela se deixa guiar pelos sons e descobre que um professor de biologia está ministrando uma aula para seus alunos. O tema lhe interessa: segundo o palestrante, as mulheres modernas, com sua independência financeira e iniciativa amorosa, estão colocando abaixo os bilhões de anos da evolução da espécie feminina. Para ele, o estudo dos hábitos dos animais comprova que os machos são poligâmicos por natureza e são eles que devem ir atrás das suas presas e cumprir sua função genética de procriadores. Em suma: qualquer gato vira-lata tem uma vida sexual mais sadia que a nossa. Apesar de machista ao extremo, Tati pede ao professor que coloque sua tese em prática e lhe dê conselhos para reconquistar seu ex-namorado. Tati-Conrado-Marcelo: está formado o triângulo amoroso.

A primeira lição que se tira de Qualquer Gato Vira-Lata é até meio óbvia: não existe comédia sem timing. A ausência desse elemento é capaz de tirar a graça de piadas que, eventualmente, funcionavam no papel. Timing não se ensina. Ou se tem ou não se tem. Sensibilidade ajuda. Percepção também. Tempo de comédia é algo invisível. Está na velocidade com que se pronuncia o diálogo. Na entonação. No volume. Nos gestos. No olhar. No movimento corporal. No uso do silêncio. Não há uma receita pronta. Uma comédia fraca com timing, fica menos ruim. Uma comédia fraca sem timing, fica péssima. Infelizmente, ao final da projeção, a constatação é de Qualquer Gato Vira-Lata está no segundo grupo.

O roteiro, de autoria da dupla Claudia Levay e Júlia Spadaccini, é pródigo em piadas. Mas é espantoso observar como a grande maioria delas é desperdiçada justamente pela falta do tal tempo certo. Há vários exemplos: em determinado momento, Marcelo acorda de uma ressaca e sente o cheiro de chocolate no ar. Ao ser avisado pelo amigo Magrão (Álamo Facó) sobre o motivo do odor, a narrativa corta para nos mostrar o que acabara de ser dito. Pode ser que a piada funcionasse na imaginação dos roteiristas, mas da forma como encenada, ela não só ficou explicativa e redundante, como sem graça, já que a inserção quebrou a fluidez da sequência. Em outro instante, Tati não gosta do café preparado por Conrado. A piada que deveria surgir com sua expressão de rejeição não funciona. A um só tempo ela é novamente redundante (Conrado já tinha anunciado que a preparação do café não era seu forte), desnecessária (não era preciso acentuar a falta de habilidade de Conrado com os atos simples da vida, já que o modo desastrado com que ele manuseara a cafeteira tinha deixado isso suficientemente claro) e mal filmada (a interação dos personagens é lenta demais).

Não bastasse isso, para um filme que pretende fazer rir, a cota de piadas sem graça ou simplesmente tolas está muito acima do aceitável. A mais emblemática é a sequência da faxineira que fica de pileque com as sobras dos drinks da noitada anterior. O problema não é atriz – que até se esforça -, mas sim a falta de comicidade proporcionada pela situação. Mais à frente, Tati dá uma carona a Conrado e, à medida que se queixa do seu ex-namorado, comete mais e mais barbeiragens no trânsito. Além de não combinar com o momento psicológico da personagem, esse tipo de piada já perdeu sua eficácia tamanha foi sua utilização em comédias americanas sobre adolescentes bobocas. Por fim, o roteiro não tem qualquer vergonha de, em vários instantes, apostar no riso fácil, sem que para isso precise lançar mão de um diálogo mais sofisticado. É o caso da estranha risada do rapaz que assiste a aula de Conrado, no início do filme; da queda de um dos garotões sarados da esteira da academia; do tombo de Tati no sofá e por aí vai.

Para não dizer que nada funciona, o filme acerta o tom em dois momentos. O primeiro deles é a sequência em que Marcelo liga para Tati do vestiário esportivo. Os diálogos são trocados de forma rápida, no mesmo ritmo das multiplicações das telas. O recurso trás para a conversa os personagens de Conrado e Magrão, que até então acompanhavam o evento de fora, de forma passiva. O artifício funciona, o texto é bom e os atores fazem sua parte. O segundo surge num outra ligação de Marcelo para Tati, cuja demora para atender o telefone provoca a gozação do amigo Magrão (“é o guru!!”). Nesses instantes, Qualquer Gato Vira-Lata consegue fazer o público rir.
 
Qualquer comédia-romântica que se preze deve respeitar três regras: deve-se ter um protagonista com o qual o público possa se identificar, conflitos amorosos verossímeis e personagens coadjuvantes cativantes e engraçados. Qualquer Gato Vira-Lata falha em todas as frentes. A Tati vivida por Cléo Pires, apesar de seus 24 anos, tem condutas mais condizentes com uma garota de 15. Seus acessos de ciúmes são tão desproporcionais que quase compreendemos o motivo que levou Marcelo a lhe dar um fora. No fundo, ela não passa de uma patricinha, auto-centrada, cujos problemas são fúteis demais para nos preocuparmos. Já Conrado nos passa a impressão de ser um cara mais abobalhado do que simplesmente tímido. Seu jeitão meio avoado e estilo de “fracassado sim, mas feliz e com orgulho!” torna quase impossível que o público sinta por ele algo além de pena. Talvez o problema seja mais da direção do que do ator, mas Malvino bem que poderia ter feito a lição de caso e visto, por exemplo, Cary Grant em O Inventor da Mocidade (Monkey Business, 1952), ou Gary Cooper em Bola de Fogo (Ball of Fire, 1941). Certamente ele encontraria nessas duas atuações uma boa fonte de inspiração para a composição do seu personagem.

Para ser justo, o único que se salva é Marcelo, que é assumidamente um playboy, mauricinho, bon-vivant, e que não está nem aí para a hora do Brasil. Dentro da sua própria lógica, ele é o único personagem verossímil da trama, que acreditamos existir fora da tela e que, por isso mesmo, nos provoca alguma reação, nem que seja de completa rejeição.

Se o casal de protagonistas tem problemas de caracterização, o mesmo deve-se dizer em relação à sua aproximação amorosa entre ambos. Afinal, desde quando um professor de biologia, que não conseguiu ter sucesso no próprio casamento, pode ser visto como um conselheiro sentimental? A tese defendida por Conrado ultra-mega-machista e deveria ofender qualquer mulher com o mínimo senso de dignidade. Mas mesmo assim, Tati o procura para ocupar a função de cupido. O ponto de partida é improvável e frágil demais para sustentar o restante da história.

Por fim, os coadjuvantes – e aqui a culpa é do roteiro – são sem graça, incoerentes ou estereotipados. Os amigos de Tati e Marcelo, Paula (Letícia Novaes) e Magrão, não tem qualquer vida própria, são figuras de papel, que só cumprem a função técnica de servir de escada para os companheiros de cena. E o que dizer de Ângela (Rita Guedes), a ex-esposa de Conrado? Abstraio o fato de a personagem ser inteiramente descartável (ele não existia na peça) e credito sua criação à necessidade de se oferecer um papel à atriz que representava o papel principal nos palcos. Homenagens à parte, os roteiristas podiam ter caprichado mais. De uma mulher que parece não se importar com seu ex-marido (ela não consegue guardar o nome do cachorro dele) nem estar nem pouco arrependida com a decisão de se separar (é ela que providencia a mudança dos seus pertences pessoais), o roteiro dá uma guinada radical ao final, transformando-a, sem muita explicação, numa megera, que não tolera perder seu homem para uma menininha 10 anos mais jovem. Rita Guedes, criminosamente desperdiçada (e, mesmo assim, claramente mais atriz que Cléo Pires), certamente não merecia isso.

A direção é de Tomas Portella, que trabalhou como assistente ou diretor de segunda unidade em produções estrangeiras filmadas no Brasil, como O Incrível Hulk (The Incredible Hulk, 2008) e Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, 2008). No entanto, a experiência adquirida – se houve alguma – não foi colocada em prática aqui. A mise-en-scene é pobre, a maioria das sequência é decupada na base do plano/contraplano, os enquadramentos são constantemente fechados, e o formato é bem próximo do televisivo. Como muitos dos filmes nacionais, Qualquer Gato Vira-Lata parece mais uma sitcom em longa-metragem.

Além da falta de ousadia visual e dramatúrgica, Portella faz vistas grossas para  algumas falhas técnica graves, a maioria deles relacionadas ao som direto. Na sequência da aula de Conrado, por exemplo, não há sincronia entre a fala de uma das alunas e o som que sai da sua boca. Mais tarde, na cena em que Paula furta um papel higiênico do banheiro, é nítido que a voz que vem de dentro da cabine foi inserida na pós-produção. Se esses problemas eram comuns no cinema que se produzia no Brasil nas décadas de 60 e 70, eles não podem mais ser tolerados pela pelo nível de exigência do espectador dos dias de hoje.

No fim das contas, Qualquer Gato Vira-Lata é mais um representante do cinema nacional de entretenimento. Se nossas salas estão lotadas de produções estrangeiras que navegam pelo mesmo gênero, é sinal que há público para este tipo de produto. Logo, por que nosso cineastas não podem explorar material semelhante, com histórias mais próximas do universo brasileiro? Não vejo nada de errado em entregar ao espectador exatamente aquilo que ele quer ver e, claro, faturar uma boa grana com isso. Desde que se faça bem feito. Infelizmente, não é o caso de Qualquer Gato Vira-Lata.

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