8,5
Maria Augusta Ramos é das diretoras brasileiras mais focadas da atualidade. Seus documentários sempre foram além de suas propostas, embora todas muito bem definidas e claras. Para projetos com conexão e um entendimento do universo de conhecimento da própria Maria, todos os seus longas traduzem não apenas seu universo, como também sua zona de interesse desde o início. Olhar pra trás hoje e ver Justiça e traçar uma linha até hoje com a estreia de O Processo é um exercício de compreender não apenas nosso país, nossa engrenagem pública e política, não apenas os lugares para onde ela quer levar seu cinema e a coerência com a qual trata tudo isso, mas é comunicar ao mundo polarizado do qual fazemos parte os reais interesses por trás desse longa metragem, e que passam bem longe do oportunismo e da panfletagem de qualquer ordem. Acima de tudo, o cinema de Maria é intrinsecamente unificado e sensato, e ainda assim é preciso de uma dose boa de respeito e desprendimento para analisar esse novo filme com distanciamento.
A primeira tomada de O Processo sobrevoa Brasília e é essencial tanto do ponto de vista cinematográfico quanto do conceitual, quase nos pegamos imaginando o filme gerando debates em 20 anos por causa dessa sequência, que coloca em lados opostos simpatizantes e detratores do governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, separados pela grama verde; trata-se de um claro esforço para se colocar neutro, ao levar o drone utilizado na cena a percorrer esse campo seguro. Ainda que venha a ser acusado de parcial, Maria em momento algum busca concordar com um lado qualquer. Esse é um padrão natural da diretora, não julgar e não condenar lado algum, desde o começo de sua trajetória, e não é diferente aqui. Há um interesse pelas personas e seus discursos, em suas falas e seus silêncios, em seus olhares horizontais e seus instantes de distância.
Tendo a experiência de seus longas com viés na criminalidade de alguma forma (além do já citado Justiça, também o posterior Juízo) e principalmente a forma como passeia pelas instâncias legais, em bastidores e corredores do jogo penal, Maria se interessa e ambienta suas lentes no que nunca é visto de um ambiente político: as portas fechadas, as reuniões, as conversas prévias a ação e também pós, tudo que cerca os grandes eventos que cercaram com pontualidade o pré-impeachment da presidente reeleita. Tendo como base o fato de que a mídia levou a público tudo que podia sobre o episódio, a diretora tem a sacada de pinçar algumas vozes proeminentes do caso e segui-las, criando um arquivo informal sobre a preparação para a tacada inicial de um processo político que ainda está longe de se encerrar, e que ainda será radiografado por mais próximos diretores em seus projetos. Por um acerto de coincidências esse é felizmente o primeiro desse quarteto, e parece constituir uma base de entendimento narrativo.
Com a estrutura imposta, essa intenção de seleção de personagens se mostra acertada, porque permite olhar para lados diferentes da questão, ao mesmo tempo que nos faz mergulhar no humano daquelas figuras, no que elas têm trágico e de cômico, às vezes banhados em ambos. Durante refeições, na mudez da solidão, na mirada perdida, ou na preparação de palcos coletivos ou individuais, o processo de Maria parece a um só tempo distinto e complementar ao macro. Em pelos menos alguns instantes tais personagens parecem posar para uma batalha, tomar fôlego para uma guerra, e o fazem com a anuência de uma câmera, por ela e pra ela. Seres reais, participando de um momento importante e real, que também tem seus momentos de representação, e o palco de seus grandes solos interpretativos é a capital federal. Mas como já preconizava George Orwell, não se consegue interpretar o tempo inteiro, e o filme busca por essa lógica dos 'reality shows' - quando se esquece das câmeras e todos passam a ser de carne e osso. E isso não demora a vir... a verdade de cada um é muito clara, e o filme defende o direito de cada um deles querer estar do lado que for.
Uma presença marcante a definir o filme para além do projeto como um todo é a presença de Karen Akerman, uma montadora das mais cirúrgicas. Maria já trabalhou com ela anteriormente e aqui seu casamento é de extrema felicidade. Ainda que careça de um arco maior abrangência na quantidade de personagens no qual a história se concentre, os esforços combinados de Maria e Karen são primordiais para observar as pessoas reais que moldaram a História, com suas certezas, dúvidas e sonhos, o tabuleiro que construiu os lances iniciais de um jogo que parece ficção, e o filme tenta se disfarçar e brincar com isso por várias vezes, uma brincadeira onde a realidade está mais do que a espreita.
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