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Críticas

Cineplayers

A imagem lacunar.

8,5
Falamos de filmes dizendo coisas e mais coisas só sobre eles. Parece óbvio, não? A obra está ali, tem uma duração, um princípio na luz e um término no escuro. Em teoria – mas só nela – esta obra está fechada, a sua presença, o seu peso, o seu significado, que afinal são coisas diferentes, só deveriam dizer respeito a ela. Mas eis que um olho, o nosso, entra em cena. Eis que, como a luz do projetor que se dispersa através da sala para a tela branca (haverá analogia mais bela com a pintura?), o ecrã começa a se colorir, toma som, o encadeamento vai dando corpo à coisa que só é na medida em que está sendo. Cinema é-sendo. E nessa atividade processual, esse olho que se lança à tela não pára. Não pára de se mexer ou de atualizar relações, imagens de outrora, símbolos que se ressignificam num instante de choque entre a imagem e a memória, significados que vêm sabe-se lá de onde. Contemplativo como possa ser, colocar-se diante de um filme nunca é uma atividade quieta. 

O que O Porteiro da Noite (Il portiere di notte, 1974) vem a implicar sobre tudo o que foi dito é que algumas relações no cinema, entre esse mesmo olho e a tela, mas também entre os que nela habitam temporariamente, a despeito de nós que os vemos, se realizam de maneira lacunar. Há alguma coisa naquelas imagens que não nos é permitido ver. Espécie de entreatos ocultos. Crueldade da construção, resguardo da história que pulsa nos seus flashbacks e nos seus ''agoras''. Algo manifesto na perversão dos campos de concentração e de extermínio nazistas que extrapola a própria existência dos tais territórios de apagamento e coerção. Porque para além das rotinas maçantes, das câmaras de gás, cadastramentos, humilhações, torturas e outras dezenas de atos de horror, existia também uma troca ali. Ou pode-se dizer que sim. O imaginável nos permite ir tão longe. 

E alguns dirão que essa corporificação na carne e na narrativa toma mais tempo que o necessário, que há protelação em demasia perante o retorno à erupção do comandante nazista e a judia frágil, a ''minha pequena garota''. Mas é que esses retornos ao passado pertencem a uma memória fragilizada, são a parte que luta para voltar ao êxtase da relação sexual permitida no âmbito da dominância coercitiva. E como toda lembrança que luta para sobreviver, especialmente porque toda a h/História (a das pessoas e a extra-humana) dos atos de brutalidade contra aqueles próprios que a escrevem e que a compõem, todo campo de batalha dos gestos de recordar se atualiza impuro, impregnado de afetos e sentimentos sobre os quais não temos controle, por isso essa imagem para Maximilian e Lucia é lacunar. É a de seus personagens passados e a de tudo o que passou desde então – e ao mesmo tempo. É por isso também que a narrativa hesita, que mesmo sabendo que os dois habitam um mesmo espaço, o agora-porteiro e a agora-musicista esperam, tornam-se relutantes.

Só que a obra de Cavani (sim, aqui importa que seja um filme fruto da sensibilidade feminina) também aponta-nos para uma questão política. Não a dos regimes totalitários, embora esta também esteja inscrita ali. É antes, e também, um caso de totalitarismo das relações e das militâncias. E que pérola a circunstância de tê-lo visto junto a Elle (Elle, 2016). Porque o que ambos (re)lançam no campo da espectatorialidade e da arte é que há certo tempo ficou interdito que a mulher se submeta. Que a Lucia de Cavani e a Michèle de Verhoeven aquiesçam aos homens que a elas impõem a força inicialmente bruta não se pode mais conceber. Ou melhor: não se pode mais, a menos que se enfrente o exército militante das exceções. Aquelas que dirão ser imperdoável mais uma aparição submissa de uma mulher na tela que precisa representá-las. E precisa. Mas precisa também. Que a primeira mulher da História tenha se insurgido a um homem não quer dizer que todas as outras precisem segui-la. Que o nosso horror se divida entre a possibilidade de violências corporais daquele tipo e o de aceitar, para que o filme prossiga, que alguém pode a elas se entregar é simplesmente parte do acontecimento que as imagens guardam.

Não haveria certa cegueira na militância sobre-politizada que só aceita que suas relações sejam complexas? O que aconteceu entre o flashback da pequena Lucia que era filmada ostensivamente pelo seu capataz, corpo rígido e envergonhado, para aquele da performer sombria cujo corpo blindado é a arma de apreciação estética e sexual autoconsciente para o regime nazista? Então que a lacuna não se preencha; algumas imagens não nos pertencem, ou o fazem só como alimento para o imaginário. Porque dentro daquela sala escura somos cúmplices desse jogo, a perversão também é nossa. Porque não se recusa a fechar os olhos, o prazer nos é entregue de bom grado. E o que o cinema pode inferir, não ele como obra parte de uma duração, mas como entidade que se compõe por imagens assim como nós somos, é que toda relação é assimétrica e guarda a virtualidade de um totalitarismo. O desequilíbrio é a lei também do cubo fechado e escuro cujo jorro de luz abre outros mundos.

Comentários (1)

Josiel Oliveira | domingo, 06 de Novembro de 2016 - 23:08

parece bem interessante.. já to baixando

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