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Críticas

Cineplayers

Sandra Werneck reencontra Luisa e Gabriel, e nos vê neles.

8,5

O frescor e a ebulição dos 30 se foram nesse reencontro de Sandra Werneck com Luisa e Gabriel, o casal protagonista do primeiro filme, um hit nacional em 97. Mas o dicionário mesmo lá atrás nunca foi um filme avulso e raso; ainda que despretensioso, a formula que Sandra concebeu, unindo o desabrochar de uma relação amorosa a verbetes do nosso vocabulário, caiu de forma simpática e irônica no olhar que lançamos para qualquer início de relação, com os arroubos de felicidade e extremos pro bem e pro mal muito bem disponibilizados e amarrados a proposta estética, que além de tudo existia! E era boa! Ou seja, o filme nunca foi apenas um "sub-Meg Ryan", tendo DNA próprio e disposto a entreter tanto quanto a radiografar fases de um amor.

18 anos se passaram, Luisa e Gabriel são um casal descasado. Ele flerta (muito!), ela casou e tem um casal de filhos; os dois vivem diferentes estágios de descontentamento conjugal. Do lado dele temos outra ex esposa, Bel, além da filha de ambos, e uma namorada para fins sexuais; do lado dela, a mãe em início de senilidade, um filho adolescente e o marido alheio e infiel. Mais uma vez o cemitério os une, e lá em meio ao enterro do pai dela surge um "e se...". Biólogo galinha e inquieto, Gabriel é um anjo caído que está entre nós sem saber muito bem o que quer da vida, e isso o angustia; já Luisa sabe muito bem o que quer, e isso inclui não permanecer casada por conveniência, mesmo que a separação signifique abrir portas solitárias. Indiferente à namorada dele e ao divórcio em andamento dela, o romance reinicia como válvula de escape, como saída e janela do mundo complicado que eles construíram. Ao redor deles, seus filhos tentam amar: o jovem filho dela ainda muito verde para entender os descaminhos entre o tesão e a emoção; a filha dele, mulher feita, jogando um jogo perigoso que mistura exatamente tesão e emoção, e demonstrando assim estar igualmente verde em relação a si mesma.

Então os amores de 97 rolaram e viraram dúvida e solidão. E assim sendo os personagens estão entrando nos 50 cheios de ressentimentos com suas próprias vidas e escolhas, querendo ou precisando mudar radicalmente. Um dos pontos positivos desse novo Dicionário é colocar todas as situações vividas dentro de um quadro de normalidade cada vez mais sincero, sejam elas de fato corriqueiras ou algo extraordinárias. O roteiro de Paulo Halm desmantela as cenas a ponto de tudo parecer coloquial e mundano, bem gente como a gente. A direção de Sandra também não deixa a desejar e coloca fotografia, montagem e trilha em eixos precisos, com planos inspirados e mais uma vez situando o Rio de Janeiro como mais do que cartão postal, e sim como um personagem secundários mas extremamente forte e envolvente para o todo funcionar a contento.

Na verdade muito do valor particular do filme acredito que virá da vivência de cada um, das situações já vividas por cada espectador em correlação à história contada, creio até que o filme peça isso, necessite disso. Não apenas em questão de compreensão e envolvimento particular, mas justamente uma observação íntima dos percalços vividos no filme, por cada uma das personagens. Tanto o adolescente, a jovem mulher, o ex marido e a ex mulher, o casal maduro agora revivido... Todos ali tem um propósito e um extrato a ser absorvido pelo roteiro, em maior ou menor escala. E todos necessitam serem comprados, porque não há herói ou vilão no filme e assim devem ser recebidos. Conforme forem as relações já vividas por cada um, acredito que cada recepção será diferente... E não é mais ou menos assim que funciona com todos os outros filmes? Mas aqui não estamos falando de quaisquer relações, mas de relações amorosas. Depende de como cada um de nós já viveu nossas histórias de amor para entrar mais ou menos no jogo de Sandra.

Nas costas do maravilhoso elenco, a tarefa nada fácil de encenar essas histórias da forma mais natural possível. O acerto de fato é coletivo, encabeçados pela cascata de química que possuem Andrea Beltrão e Daniel Dantas, revivendo um passado de duas décadas atrás como se fosse ontem, tão fresca é sua interação e entrega. Ambos em seus universos paralelos encarnam a perfeição um momento chave de desconforto pelo qual todo mundo já passou, mas aqui muito disso é transmitido pelo olhar e pelos gestos, em sub cenas capturadas no meio de outras, onde eles literalmente vagam para bem longe dos fatos, a bordo de Luisa e Gabriel. Glória Pires continua esbanjando talento num papel que também já existia no primeiro exemplar, e dá bailes como a viajandona Bel, sempre muito sagaz e divertida. Fernanda Vasconcelos é a filha libertária de Bel e Gabriel, que acaba se enrascando numa situação que ela mesma cria (e caminha cada vez mais parecida com o pai em sua desorientação), e também se sai muito bem transmitindo cada raio de curiosidade de sua rica persona. O achado nível revelação do filme é o filho de Guel Arraes, Miguel, como um jovem típico dos dias de hoje que acaba caindo numa armadilha igualmente típica, e que tem ao menos uma linda cena com sua mãe na ficção, Andrea.

Com elenco perfeito, direção delicada e um roteiro verdadeiro e intenso, apenas pequenas pontas situações aqui e ali tiram o filme da nota máxima. Mas toda a reflexão que os 20 minutos finais propõem ficam por muito tempo com a plateia, principalmente a última e enigmática sequência, um belo passeio de bicicleta que pode resumir a vida de todos nós. Afinal, quem aqui está pronto e disposto a uma nova guinada, a um novo amor, a um novo mergulho, a refazer toda a trajetória na qual você tinha se jogado até agora? E como saber qual é o momento certo para isso, a pessoa certa, o lugar certo? Nada é certo, tudo deve ser eternamente pensado e refletido... A conclusão interna? Será que há?

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