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Pele que Habito, A

(La piel que habito, 2011)
8,1
Média
840 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

As cores do noir.

7,5

Se no texto sobre Melancolia (Melancholia, 2011) falávamos do furor causado pela figura de Lars Von Trier em Cannes (que conseguiu a proeza de sair daqui como persona non grata), a presença de Almodóvar não faz menos barulho, ainda que de forma bastante mais inofensiva. É impressionante sua horda de groupies, mesmo em uma sessão que em tese se destinaria a profissionais da imprensa. O clima da sessão de A Pele que Habito (La Piel Que Habito, 2011) lembrava essas estréias de filmes como Star Wars, nas quais pessoas assistem aos filmes com espadas à mão, peculiares próteses auriculares e artefatos os mais diversos, porém, aqui, numa chave mais ONG-Cult, viva as minorias e tal e coisa. Esse clima de ovação, ainda que legítimo, acaba não fazendo jus às próprias complexidades e sutilezas do filme, já que a aprovação ao que seria exibido em tela precedia a exibição em si: em diversos momentos a platéia ria antes mesmo que a piada se completasse (em outros o riso vinha mesmo quando não se tratava propriamente de uma piada).

Mas nem ele, o belo cineasta que é Pedro Almodóvar, nem La piel que habito, esse filme estranho, algo desconjuntado e sempre interessante, têm muito a ver com este relato, cuja existência deve ser creditada a uma vontade de passar ao leitor um pouco do clima por aqui.  Neste novo trabalho, Almodóvar confirma a tendência recente de aprofundamento das relações entre seu único e indistinto universo particular e o cinema de gênero. Algo sempre presente em sua obra (ver, por exemplo, como agencia Noite de Estréia [Opening Night, 1977], de John Cassavetes, e A Malvada [All About Eve, 1950], de Joseph Mankiewicz, em Tudo Sobre Minha Mãe [Todo Sobre Mi Madre, 1999]), é, no entanto, a partir de Má Educação (La Mala Educación, 2004) que esta aproximação se intensifica, tendo em Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, 2009) outro peculiar momento – em um filme que me parece ter sido “abandonado” um pouco antes da hora, diga-se de passagem.

Embora estejamos em território misto, onde se transita pela ficção científica e o cinema de terror dos anos 1930, a base de La Piel que Habito é o noir, principalmente no que diz respeito à estrutura de sua narrativa: uma trama complexa, cheia de melindres, que oferece novas aberturas e angulações dependendo da perspectiva de entre quem olha e quem mostra - criando o clima essencialmente ambíguo que marca o subgênero tanto em sua matriz literária (o filme é inspirado em Mygale, de Thierry Jonquet, escritor noir) quanto cinematográfica – e Almodóvar revindica, muito coerentemente, Fritz Lang como referência principal para o projeto. Em pequeno parêntese, há também no filme uma presença marcante da pintura, tanto de forma direta (os diversos quadros na casa do protagonista), quanto mesmo na atmosfera, que pessoalmente me remeteu à obra de Bosch – mas é preciso maior tempo de maturação estética para adentrarmos nesta seara.

É, enfim, na maneira com que Almodóvar consegue articular as possibilidades e liberdades do gênero com as questões que está em interessado em abordar que se dá a força deste novo filme, cuja trama gira basicamente em torno de Robert Ledgard (Antonio Bandeiras), um cirurgião plástico renomado que também conduz secretamente pesquisas relativas à construção do tecido epitelial humano e que empreenderá uma peculiaríssima vingança contra Vicente (Jan Cornet), aquele que acredita ter estuprado sua filha (Blanca Suares). Se ao mesmo tempo o noir demanda uma condução segura, firme, uma habilidade na construção e manutenção da força e da verdade própria do universo construído, ele também abriga o lugar da coincidência improvável, da virada inesperada e logicamente pouco crível. E é justamente essa fresta do gênero, por assim dizer, que parece interessar a Almodóvar. Tudo é possível desde que se mantenha a relação de encanto e mistério com o que se vê na tela.

E o próprio personagem de Bandeiras é incrível de tão improvável: aqui temos uma espécie de Dr. Frankeinstein fatal, um cientista louco e obstinado e um latin lover conquistador, bonito e bem sucedido. E a composição fica ainda mais rica se considerarmos os vestígios da presença anterior de Bandeiras na obra de Almodóvar. É como se Bandeiras fosse ele também uma metáfora da condição mutante dos corpos em Almodóvar, para quem o corpo pode ser tanto clausura como libertação – tema decisivo de sua obra e também deste La Piel que Habito. 

No entanto, o excesso, que também é componente de seu cinema, torna por vezes o filme um pouco desigual e multifocado demais: é possível fazer um thriller que fala sobre a doentia vaidade contemporânea, os limites éticos da ciência, relação entre pais e filhos, corpos em mutação, e ainda sobre a dimensão contingencial das coisas, dentre vários outros temas tocados pela polifonia dramática de Almodóvar? Essa interessante e única articulação entre o excesso (dele) e a concisão (do thriller) parece  constituir tanto a principal virtude de La Piel que Habito, quanto suas possíveis fragilidades. A sensação é  a de que o melhor equilíbrio ainda esteja por vir.

Visto no Festival de Cannes 2011.

Comentários (4)

Patrick Corrêa | sexta-feira, 04 de Novembro de 2011 - 12:52

Ótimo texto, apesar de eu discordar da nota... o filme merece muito mais, está longe de ser frágil como o Rafael apontou.

Bruno Kühl | sexta-feira, 04 de Novembro de 2011 - 23:45

Tenho certeza de que é incrível! Mas tenho que ver ainda pra confirmar 🙂
E a crítica tá boa, o excesso do Almodóvar é puro charme pra mim...

Aderson Bohadana Coutinho Rodrigues | sábado, 05 de Novembro de 2011 - 09:56

Adorei o filme, um misto de gêneros dosados de uma forma tão boa que só um gênio poderia fazer. Mas acho que quem gosta de escrever spoilers em suas críticas deveria avisar antes para dar liberdade ao leitor se quer ou não estragar parte de sua experiência no cinema. AINDA BEM que só li esse texto hoje, depois de ver o filme.

Patrick Corrêa | domingo, 06 de Novembro de 2011 - 00:26

Anderson, o texto não tem nenhum spoiler. O grande segredo da narrativa permanece preservado aqui.

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