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Críticas

Cineplayers

As delícias do mau gosto.

8,5
Há filmes inscritos numa pequena redoma de delicadeza no tratamento e para os quais nenhum atributo comumente tido como negativo pode necessariamente vir a depreciar seu valor estético, ou, se preferirmos, a fruição. Eles na verdade vêm para provar que tudo sempre, ou quase sempre, precisa ser colocado em relação. Que houve, na arte, uma virada responsável pela relativização do gosto, gesto em que foi - e é - preciso dar um passo atrás e se questionar sobre os atravessamentos de categorias entre a alta cultura e seus níveis tidos como ''inferiores''. Perceber, enfim, que o panteão aurático da oeuvre d'art desceu à sensibilidade popular sem abrir mão de altos valores estéticos, e também que toda uma gama de adjetivos pejorativos não farão nada além de reforçar a força interna dessas mesmas obras – é nessa sensibilidade, cujo efeito é torcer expressões, que elas lapidam a própria constituição, e o gosto/não gosto fica restrito à margem da análise que delas se deve fazer.

'Ela importa' é diferente de 'eu não gosto'. E porque é possível detestar Pele de Asno (Peau D'âne, 1970), esta excentricidade em meio à turbulência da Nouvelle Vague na qual o próprio Demy estava inserido, não necessariamente implica que o espectador deva rejeitar também o seu apelo como obra kitsch, embora a total autoconsciência de Demy de certo modo a retire dessa inocência do artifício. Mas fala-se em total ciente também do que o adjetivo implica. Há todo um excesso e abrangência dos cenários e dos figurinos, toda uma extravagância na composição dos espaços, uma saturação demasiada da cor e uma texturização quase desnecessária para obra do começo ao fim, que não se pode negar um mais que voluntário mau gosto na execução. Propositalmente também, Deneuve e Seyrig são afetadas demais, quase como se o único universo possível para essa emulação de um conto infantil fosse o da elevação de um mundo que já é onírico o suficiente para uma estetização do próprio excesso.

E precisamente por conta da sua visualidade, não há melhor materialização para Pele de Asno do que o cinema. Atestado irônico, se pensamos que o campo da adaptação, ou seja, o da literatura, persiste em inferiorizar as artes visuais pela sinestesia, como se a existência de som e imagem prescindisse do pensamento, da articulação. Mas o que a obra de Demy metamorfoseia do conto infantil é no mínimo metade pensamento em si. Do subtexto ao encadeamento visual, é essa estrutura de um deslumbramento provinda da narrativa falsamente pueril que costura a montagem fílmica.

Porque tudo no filme é movido por amores que precisam se concretizar – do rei para a rainha, de pai para filha e vice-versa, da fada-madrinha pelo ordenamento do mundo, do príncipe pela princesa –, as cenas se assemelham a blocos de sensações, ou pequenos retratos de sentimentos caricatos que variam do desespero à angústia, do amor à breve impossibilidade. Daí as canções que permeiam a narrativa não guardarem o devaneio ou a suspensão abrupta comum aos musicais, mas sim permanecerem como floreios musicalizados de situações prosaicas (cozinhar um bolo, tornar cômico o fedor da princesa e os desesperos das mulheres do reino para emagrecer os dedos das mãos). São pequenas sentimentalizações estéticas que guardam o paradoxo de um conto que é ao mesmo tempo sombrio e grotesco, como se fosse impossível, aqui, esconder certos valores obscuros e subjazentes aos contos que crescemos ouvindo e recontando. A princesa invariavelmente deseja sucumbir ao pedido de casamento do pai; há uma velha que cospe sapos e um asno que defeca moedas de ouro e joias.

Dentro da narrativa possivelmente mais batida e mastigada da história, a de um encontro amoroso e as intempéries de sua realização, em meio felinos gigantes como tronos, cavalos e anões azuis e vermelhos, meias-calças cintilantes de glitter prateado, uma centena de flores artificiais, vestidos que ameaçam engolir suas damas e princesas - como é concebível classificar a obra de Demy diante das ebulições circunstancias da política francesa da época? Ora, se havia toda uma reverência dos autores da Nouvelle Vague ao grande cinema americano e uma busca incansável, incarnada numa teoria e numa práxis revolucionária, por algo que fosse autêntico e singular ao cinema, não podem restar dúvidas sobre a influência indireta porém efetiva dos primeiros filmes americanos e franceses e a toda uma elegia ao espetáculo em si. Porque se o cinema também é território de sonhos, não é exclusivamente naqueles embriões de uma arte a se individualizar, mas sobretudo neles que a magia se manifesta. E se Pele de Asno é mais Meliès que Godard ou Truffaut, é por conta dos atributos negativos que a ele apontam: nas alterações de velocidade que o rewind e o slow motion provocam, o corte brusco numa mesma cena para fazer materializar um elemento de um milésimo de segundo a outro; enfim, todo um anacronismo do espetáculo antigo e que hoje soa como o mais delicioso dos maus gostos.

Comentários (1)

Luís F. Beloto Cabral | segunda-feira, 17 de Abril de 2017 - 15:54

Ótima análise - gostei muito da associação final com o cinema de Meliés! Mas só tenho uma ressalva: Demy bebe muito da obra do Jean Cocteau e Pele de Asno possui um sem par de referências à A Bela e a Fera de 1946. Creio que a reflexão sobre o filme também tem de considerar essa relação com Cocteau, o qual se põe justamente entre esse cinema fabuloso original e o cinema moderno da Nouvelle Vague.

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