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Críticas

Cineplayers

"Quando os envolvidos são pobres, o Judiciário não procura justiça, e sim culpados."

8,0
Assim desabafa a personagem Paulina (Dolorez Fonzi) em algum momento de Paulina (La Patota, 2015), mais recente longa-metragem de Santiago Mitre. Tal colocação que põe em xeque a funcionalidade de todo um sistema judicial é também uma forma  de exemplificar sobre o que Paulina quer realmente falar: até onde  vai a dita justiça dos homens? Como ser mulher e viver num mundo cujas regras e a própria separação entre certo e errado é ditada por homens? E a vítima, até onde vai a compreensão dos outros ao redor sobre ela? Paulina é, já por si só, uma experiência de desafios morais.

Porque é isso que quer Santiago Mitre ao levar sua protagonista a contrariar os desejos do pai, um juiz cujo sonho é vê-la sendo uma advogada de sucesso, para se tornar professora de uma comunidade pobre localizada na fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil. Paulina encontra dificuldades para lidar com sua turma e recebe olhares tortos principalmente de quatro alunos da sala. E o inesperado acontece: Paulina é violentada em uma certa noite no escuro; apesar disso, possui convicção de que sabe quem foram seus agressores (entre eles um homem que havia acabado de terminar um relacionamento ciumento com uma mulher), assim como também possui convicção de que seu desejo não é levar seu caso até os limites da justiça imposta. Assim, Paulina decide se manter na escola com suas aulas, contrariando os desejos e as expectativas de todos.

Mitre não poupa o espectador de abrir feridas contundentes dentro de nossa sociedade moderna no que se refere ao julgamento inicial do indivíduo; leia-se, indivíduo do sexo feminino: “A que horas você estava na rua?”, “Estava sozinha?”, “Estava bêbada?”, "Que roupa estava vestindo?”, é obrigada a ouvir Paulina em seu primeiro depoimento sobre o ataque sofrido, num questionamento claro e provocativo sobre o ponto de partida de um sistema. Diante de sua própria percepção dessa justiça falha, que subjuga a mulher como uma espécie de culpada pelos motivos que levam a uma agressão, Paulina entra numa espécie de transe reflexivo sobre si mesma e sobre sua própria condição de vítima, e aqui cabe perfeitamente a atuação forte e carregada de um semblante sério de Dolores Fonzi, que nos permite compartilhar da compreensão sobre as atitudes de Paulina que apenas o roteiro não conseguiria.

E conforme Paulina avança, mais seus caminhos se tornam controversos e incapazes de atingir um padrão de satisfatoriedade para os que estão ao seu redor. A amiga diz que já não a conhece mais. O namorado a abandona. O conflito com o pai, que deseja a justiça a qualquer custo, é inevitável. E compreendemos perfeitamente a ira e a injúria de todos estes personagens. Mas e Paulina? Nós a entendemos? Nós, antes de nos preocuparmos sobre como a justiça irá nos satisfazer, nos preocupamos com o que a vítima realmente quer? Paulina desafia concepções morais e éticas para abrir as janelas do debate sobre até onde esse sistema moldado, que subjuga os indivíduos à margem da sociedade, é funcional.

Muito provavelmente você sairá da sessão de Paulina com um misto de sentimentos que pode ir da compaixão até a raiva em míseros segundos, e nesse sentido, o longa de Mitre atinge seu objetivo. É uma experiência que mexe e indaga, um cinema de grande força moral, ética e política.

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