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Críticas

Cineplayers

Um de Palma exemplar.

7,5

O primeiro terço de Passion, livre refilmagem de De Palma do francês Crime de Amor (Crime d'Amour, 2010), de Alain Corneau, é todo dedicado a apresentar a atmosfera da multinacional que será o labirinto de intrigas – chegando a filmar os diálogos expositivos e irônicos em plano e contraplano. Mas o que era thriller psicológico antes, um jogo de gato e rato que atraiu de Palma em suas potencialidades Hitchcokianas, lentamente vai se transformando em um filme onde as imagens e suas funções dramáticas são constantemente reinventadas.

Portanto, no que tange à estrutura, o jogo de expectativas de De Palma não é muito diferente do que ele já fez, do slasher que logo revela seu caráter de farsa para entrar na trama limítrofe de Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981) ou a trama de mistério metalinguística de Dublê de Corpo (Body Double, 1984); essa dissolução entre realidade e mentira própria do cinema sujeitam as tramas dos seus filme e seus personagens o tempo inteiro, e o que a câmera mostra, deixa de mostrar ou esforça-se para recuperar, a mercê da vontade de seu realizador e sua capacidade de controlar informação, falar meia verdade – e moldar e remoldar a imagem com isso.

De Palma, como também já tinha feito no mais recente Guerra Sem Cortes (Redacted, 2007), explora mais de um ponto de vista, mais de uma percepção da verdade, mais de uma potencialidade da imagem: Passion é, portanto e mais uma vez, a sala de espelhos absurda de De Palma. Enquanto o filme caminha, menos certeza temos, e mais a fogueira de vaidades do início desemboca naquela velha mistura que seus fãs já se acostumaram: o ponto de convergência entre paixão e morte, entre Eros e Thanatos, entre o ato apaixonado e o ato de violência, as duas pulsões que fundamentalmente movem o espectro de emoções humano, mais do que nunca no caso dos limítrofes personagens típicos do diretor.

Pouco a pouco, os seus olhos te enganam, a atmosfera estéril e controladada, o bom gosto inofensivo transforma-se pouco a pouco nos travellings ensandecidos, nos closes invasivos e agressivos, na intensificação entre a música do suspense e os trejeitos do suspense, provocando um revival, nos dias atuais, da antiga estética que de Palma emulava do cinema fantástico italiano e dos clássicos noirs e thrillers norte-americanos. As câmeras giram e deliram filmando as duas ou mais femme fatales em um jogo de mentiras destruído e reorganizado a todo instante. A angulação reta e quadrada “entorta” quando o sexo se confunde com a morte; os personagens não mais observáveis sobre os tons pastéis, mas sobre os filtros psicodélicos e expressionistas e tornam-se, a partir daí, ambíguos, confusos, deixando as figuras típicas que encarnam pouco nítidas, confusas, com mais de uma função narrativa. De Palma é obsessiva em entornar o suspense tradicional, onde todos os seus elementos são coringas.

A questão de não haver uma realidade, mas várias, contextualizam que uma estética se transforme em outra, que durante o filme veja-se a perspectiva de câmeras de segurança, de uma webcam, de uma câmera de celular e, é claro, a câmera de cinema, que transforma a realidade estagnada que inicia toda sua narrativa em situação, conflito, perigo e transforma a pura impressão de movimento em impressão significante, na criação de um bloco de afeto em rota de colisão com o espectador.

Mesmo que ainda se apoie no modo clássico-narrativo de se fazer cinema, De Palma é antenado com a pós-modernidade que o cerca, com as identidades e tecnologias mutantes, com a percepção esfacelada, com personagens sem função exata e com identidade fluida. Passion escorre longe da reinvenção, mais próximo da revisão, da eterna volta ao território conhecido, mas que sempre trazem o indivíduo criador de imagens diferente do que era da última vez.

O De Palma de Passion não é tão hiperbólico quanto antes, e seu diálogo cervantino com filmes pregressos, no sentindo de estabelecer um diálogo direto, fazendo galhofa dos clichês, chocar a idealização subjetiva com a frustração objetiva se adapta agora a um novo contexto – ainda é uma obra puramente do cinema – é um filme versão do outro filme, a resignificação de um suspense já conhecido, a deformação e inversão de uma potência ao seu gosto.

Certa feita, Orson Welles disse que o cinema é o maior trem elétrico que um menino pode ter. De Palma parece concordar: ao mexer com emoções básicas, ao inventar de novo o que já foi inventado, ao olhar para X e ver Y, Passion dialoga de forma contemporânea com o cinema de suspense, torcendo o horizonte de expectativas e mostrando o por que de achar o cinema o grande dispositivo de fabulação da humanidade. Assim como uma criança olha para miniaturas de trens e bonecos e vê veículos e heróis, Passion olha para história de crime passional e disso faz cinema. Irregular, com maravilhosos surtos, com expectativas invertidas e revertidas, com algumas imagens impressionantes, que nos fazem desprezar por um segundo a barreira entre a fantasia e o real: atrás de uma imagem só há outra imagem, só outro bloco de afeto. E é justamente isso do que é feito um de Palma legítimo.

Comentários (13)

Luiz F. Vila Nova | quarta-feira, 02 de Abril de 2014 - 22:13

De Palma mostra que ainda esta em forma e apresenta aqui um ótimo suspense, que resgata suas raízes cinematográficas com eficiência. Não é uma obra-prima, mas vale a conferida.

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