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Críticas

Cineplayers

O anti-cinema de Yasujiro Ozu.

9,0

Pai e Filha, lançado em 1949, é um dos títulos mais relevantes dentro da filmografia do japonês Yasujiro Ozu – um dos representantes mais influentes na criação do cinema contemporâneo. Realizador desde 1927, foi justamente no final na década de quarenta que Ozu começou a ser considerado como um dos grandes mestres do cinema japonês e também responsável por influenciar de forma marcante todo um cinema nascente.

A obra conta a história de um velho professor  viúvo que quer casar sua filha, Noriko, que não sente necessidade até então e prefere ficar em casa, cuidando do pai. O pai, Somiya, após tentar com a sua irmã Masa apresentar algumas pessoas para Noriko, que prontamente os recusa, ao mesmo tempo passa a se relacionar com Sra. Miwa, uma viúva conhecida de sua filha. Quando conta da intenção de se casar para a filha, a mesma fica arrasada de ciúmes e acaba aceitando se encontrar com o rapaz que tentam lhe arranjar.

Ao contrário da peça Noh (uma espécie de musical dramático japonês) em que pai e filha assistem em um dos momentos mais importantes do filme, Ozu optava  não pelo sentimentalismo, mas sim por uma narrativa contemplativa, onde o conflito era dissovlido e quase invisível imageticamente, dada a natureza introspectiva de seus personagens; dentro dessa economia praticada, de jamais alterar o ritmo ou o tamanho do quadro para tentar favorecer uma emoção sobre outra, é que surge o conflito humano, tridimensional e exaustivamente praticado pelo diretor, que se apropriou do lugar comum da vida simples do japonês para fugir do lugar comum e espetacular estabelecido dentro do cinema. O tempo diegético é mais extenso, os cortes são mais econômicos; a grandeza e a altura de planos não são mais identificadas com o “eu”.

Em Pai e Filha, observamos um dos exemplos pioneiros  desse novo regime perceptório de imagens - na estilização realista de Ozu, seguindo a tradição da câmera parada, o diretor ordena uma sequência de planos de determinada duração que não necessariamente segue os personagens dentro do quadro, mas expressa sua relação temporal, espacial e psicológica com o mundo. O movimento não  é mais a única propriedade  essencial do cinema, mas seu caráter temporal também lhe serve de propriedade. Evita-se o espetacular, o olhar guiado, o psicologismo, cria-se a exposição, a repetição de fatos. Os personagens vagam pelo Japão do pós-guerra em tom inalterável, enquanto suas vidas mudam drasticamente de forma que os mesmos vão percebendo aos poucos.

A época que o filme foi feito, transformações sociais ocorriam no Japão; leis recentes autorizavam pessoas acima de vinte anos casarem-se sem consentimento dos pais e também legalizava o divórcio. Apesar de ser uma história sobre um pai querendo que a filha saia de casa e se case, o mesmo procura despertar o próprio ímpeto na filha. Noriko é uma personagem que caminha da tradição para modernidade, tanto no tocante às vestimentas quanto à maneira de se observar e relacionar-se com o mundo.

Com o desenrolar do filme, Noriko, que é consumida pelo ciúme ao ver pai viúvo atrair-se por outra mulher e considerar “sujo” o amigo viúvo de seu pai casar pela segunda vez, irá tornar-se tolerante com o seu pai e consigo mesma, enfim livrando-se do carinho exclusivamente familiar que a reprimia sexualmente e acaba se sentindo atraída por outro homem. O crítico japonês Tadao Sato indica que essa transformação introspectiva, surgida em um conflito entre pai e filha, representa a perda de força do lar japonês como fortaleza moral onde os personagens se adequam às tradições normativas. A libertação desse paradigma castrador e a resolução para conflitos implicariam por vezes na saída do lar e na dissolução da família, mesmo que causem angústia emocional.

Tais temas relacionam-se de forma singular com a estética particular de Ozu, que segundo um ensaio do diretor Kiju Yoshida, compõe um “anticinema”, onde várias características formais de Ozu opostas à grande forma conferiram à sua obra um estilo único, longe do psicologismos, sem grande trabalho na modulação de voz ou no gestual dos atores, dispensando as transições normais como fades e dissoluções, usando cortes secos ou a contemplação de objetos (só então surgindo a música) para criar-se uma nova sensação de tempo passando entre uma sequência e outra, e também ignorando a linha do eixo de 180 graus; o diretor foi um dos primeiros a dispensar o uso do raccord de olhar para filmar conversações. O rigor estético se tornaria cada vez mais firme com a experiência.

Entre as inovações, Ozu inventou o “plano de tatame”, uma câmera quase colada no chão que filmava seus personagens muitas vezes sentados, que recortam geometricamente corpos distantes que ganham tamanho dentro de um quadro imóvel em movimento, mas mutante em sua movimentação, alterando a grandeza do nosso olhar em relação ao objeto.

Mesmo enquanto encenavam personagens em pé conversando com outros sentados, o estilo de decupar de Ozu “descontinuava” a espacialidade construída e transforma sua câmera em um olhar “inumano”, não identificado mais com os nossos olhos e sim, com um olho cinematográfico. Cada imagem que  o diretor entrega, mesmo décadas depois, ainda impressiona pelo anacronismo visual, agressivo ao olho domesticado, que força o espectador a testemunhar vidas ordinárias livres de um conformismo estético.

A câmera parada, que capturava olhares que não se encontravam e desprezava a obediência ao plano subjetivo, muitas vezes encaram o personagem de frente, sem perspectiva, como se eles encarassem diretamente o espectador enquanto conversavam. As poucas cenas de câmeras móveis nesse filme seguem os personagens em dolly precisamente na mesma velocidade em que eles se movimentam, quase anulando o movimento dos atores; visualmente, seu deslocamento ainda é mínimo, assim como quando vêm de encontro a câmera.

Outra característica curiosa era o uso de elipses - a seleção que narra o drama exposto no filme é puramente o anti-conflito; o que normalmente seria considerado peça-chave dentro na narrativa é sumariamente limados par que os momentos prosaicos e bucólicos falem por si. Isso constitui a forma ambígua que forma o conjunto: uma das cenas mais notórias é quando Noriko diz ao pai que se arrepende de tê-lo chamado de “sujo” e que agora não acha a ideia de casar pela segunda vez tão repulsiva, e após descobrir que o pai está dormindo, encara um vaso de porcelana. Há uma dinâmica entre o quadro inalterável no plano do objeto e uma Noriko sorridente no primeiro e contemplativa e triste no segundo. Esse jogo de planos indica uma transformação na relação entre os dois, assim como a volta ao vaso, que inicia uma música com a qual será feita uma elipse.

Os inserts elípticos de Ozu não são baseados unicamente na localização geográfica, mas, corroborando com o título original, “fim da primavera”, também com a mudança de tempo. Tudo parece estar constantemente mudando no filme, mas de forma imperceptível; não à toa vemos apenas os momentos ordinários de pessoas ordinárias, jamais seus momentos notórios, e encaramos construções, paisagens e ouvimos música indicando a mudança de cena. Esses planos aparentemente “vazios” constituem uma das maiores qualidades de Pai e Filha: contemplar a ação e a transformar o tempo sem necessariamente tornar isso claro; tudo no filme muda, apesar de nada mudar aos olhos do espectador.

A atmosfera, ditada pelo ritmo do corte, jamais subordina as suas imagens; se conta que toda a construção, desde o ritmo temporal dos cortes quanto a construção espacial das casas, era detalhado com fervor por Ozu seguindo à risca o roteiro. O espaço está a serviço das ocorrências do dia-a-dia; seus personagens vivem e interagem com ele tempo todo; tempo esse que abandona a ideia da percepção moldada, e no filme aposta no recorte, no enquadramento, na captura do fato com a maior fidelidade possível; o leque de sentimentos é bem visível e o que nos cabe é identificar suas inúmeras variações expressas através de inúmeros pequenos gestos e pequenos planos ordinários como os seus personagens, residindo dentro de uma obra que já não acredita mais na deformação psicológica como melhor caminho.

Pai e Filha, além de obra cinematográfica completa, de autenticidade inquestionável (carrega toda a “assinatura” de seu criador) é um testemunho da importância de Ozu para o nascimento e experimentação do cinema contemporâneo, deslocado de um regime estético e aventurando-se na não associação do olhar da câmera com o olhar humano, determinado a criar um novo modo de olhar, contemplar, pensar e debater.

Comentários (32)

Francisco Bandeira | quinta-feira, 24 de Outubro de 2013 - 21:54

HAHAHAHAHA eu seeiii... Tem uns caras que se dizem crítico, mas nem comento...

Bernardo D.I. Brum | sexta-feira, 25 de Outubro de 2013 - 16:44

Tenho vontade de escrever sobre todos dele, na verdade, mas e o tempo?

Bernardo D.I. Brum | sexta-feira, 25 de Outubro de 2013 - 16:45

E pô, muito obrigado mesmo, Rodrigo. apesar de achar que você tá exagerando e muito hahaha.

Francisco Bandeira | sexta-feira, 25 de Outubro de 2013 - 20:22

Hahaha sei como é Brum... Meu pedido pra você escolher, fica entre Uma Mulher Sob Influência e Sombras.

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