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Críticas

Cineplayers

Belíssimo exemplar de cinema do mestre Yasujiro Ozu, capaz de transformar momentos singelos em grandes obras.

8,5

Um dos filmes mais tristes do cinema acaba de ser lançado no Brasil: Pai e Filha, que o diretor japonês Yasujiro Ozu filmou em 1949 e até hoje continua de uma beleza atroz. A  história não poderia ser mais simples, como em todos os filmes de Ozu: um pai precisa convencer sua única filha a se casar. Ela não quer, prefere ficar em casa cuidando dele. É o suficiente para o mestre Ozu fazer um de seus filmes mais amados entre seu batalhão de fanáticos adoradores – Win Wenders é um deles, tanto que lhe dedicou um filme, Tokyo Ga, que vem junto como extra na edição da The Criterion Collection, bem diferente do franciscano DVD lançado aqui.

A filha, já com 27 anos, não necessariamente bonita, muito menos dotada de uma inteligência brilhante, com uma certa tendência ao conservadorismo e ingênua, não percebe como amigos e parentes a vêem: uma provável solteirona. Ela tem uma amizade interessante com o assistente do pai, mas ele é casado. Tanto que eles vão andar de bicicleta e Ozu faz sua primeira cena inesquecível.

Mas é impossível esquecer, mesmo, a cena em que a filha, que vai a Kyoto com o pai para ver uma peça de teatro Nô e entende, pela primeira vez, olhando para a platéia lotada de casais, como a sociedade a via e o desprezo para gente como ela. Sente-se humilhada e chora baixinho, para que ninguém veja. Ao sair, simplesmente não consegue  andar ao lado do pai na mesma calçada e vai para outra. A câmera de Ozu mostra as pernas do pai com ela longe ao fundo, num de seus famosos planos-tatame (a câmera está sempre posicionada num ponto abaixo, parece que está sentada, à moda japonesa, olhando tudo ao redor, percebendo tudo).

O pai é tradutor e significa a cultura ocidental, o feminismo, a nova posição para a mulher na sociedade, enfim, o tema por excelência de Ozu, que filmou de maneira inigualável as transformações pelas quais passaram o Japão no pós-guerra: as influências ocidentais. O pai traduzia uma biografia de Lizt, economista respeitado que largou tudo para estudar música e se tornou um dos grandes pianistas do século 20 e um dos compositores mais famosos de música clássica. É com esse aparato que o pai vai descobrir uma artimanha para dobrar a filha.

Ozu não tem o vigor narrativo de Akira Kurosawa e seus samurais surrealistas, nem a beleza visual de Keiji Mizoguchi, longe das questões existencialistas de Kiju Yoshida e é diametralmente oposto às polêmicas de um Shohei Ymamura, para citar alguns de seus contemporâneos. Seu cinema é calmo e contemplativo, nada tem de cáustico ou beligerante (ao contrário, muito pelo contrário), daí a recepção de sua ter sido um pouco mais tardia, mas não menos entusiasta. O cinema de Ozu exige uma pausa e reflexão antes de se embarcar nele, está totalmente fora de todos os padrões do que se conhece como cinema comercial.

Esse Banshun (fim de primavera, na tradução literal do título original) termina com uma cena memorável: o pai descascando uma maçã. É um filme marcante na carreira do diretor. Ele, que começou fazendo comédias na década de 30, foi gradualmente se direcionando para filmes mais intimistas, seus famosos dramas familiares, até eclodir na sua obra-prima, Viagem à Tóquio (1953). Pai e Filha já tem todos os contornos dessa nova fase, em que as pessoas se machucam sem querer, em que a convivência vai causando toda sorte de infortúnio sem grandes desastres, apenas acumulando pequenas tristezas e desilusões – apesar de pequenas, são suficientes para arruinar a vida de muita gente. E ninguém conseguiu filmar essas miudezas tão bem, com tanto carinho e com tanta singeleza como Yasujiro Ozu.

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