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Outubro

(Outubro, 2019)
4,3
Média
3 votos
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Críticas

Cineplayers

Diário editado e desencontrado

4,0

A vitória de Jair Bolsonaro em outubro de 2018 e a derrota do candidato do Partido dos Trabalhadores Fernando Haddad simbolizou, de alguma forma, o fim de uma era. A era Lula, com seus erros e acertos, chegou ao ápice do desgaste durante o governo de Dilma Rousseff, que sofreu um controverso impeachment em 2016. O crescimento da revolta popular frente a um país em crise econômica abalou a enorme influência de um partido tradicional desde a Redemocratização, que se mostrou ineficaz em lidar com os problemas à época.

Com isso, os sentimentos de insatisfação das Jornadas de Junho de 2013 foram capitalizadas pelo crescimento pela direita conservadora, a mentalidade neoliberal e, eventualmente, pelo novo presidente, que agora experimenta a missão de governar um novo Brasil prometido, longe dos repetidos rótulos de inimigos imaginários como o "comunismo" e o "politicamente incorreto", as palavras-chave mais repetidas pelo líder direitista. Mas como a classe artística reagiu a isso?

Foi o que instigou a atriz Maria Ribeiro (Tropa de Elite, Como Nossos Pais), na frente e atrás das câmeras com o diretor Loiro Cunha, que após experimentar o divórcio, a se paramentar de seu vestido de noiva utilizado durante a cerimônia, andar em uma passeata bolsonarista e conversar com amigos sobre as suas angústias nos sete dias que antecedem a eleição. O resultado foi o documentário Outubro.

Para dizer o mínimo, o resultado é confuso. Afinal, o que veríamos aqui? Um misto de documentário e ficção? Os simulacros de representação jamais são explorados o suficiente. Mesmo a interação da criação de personagem contra um ambiente não-combinado, baseado na improvisação, é "en passant" demais, reservado ao início. Boa parte do documentário se dedica a entrevistas "talking heads", todas guiadas por uma narração em off de caráter impressionista, onde a atriz comenta de maneira pontual e até espirituosa as relações que faz entre seu divórcio e a falência do modelo defendido por uma parcela significativa da classe artística. Afinal de contas, é justamente o filme sobre as angústias de uma artista.

E, apesar de mostrar a perplexidade de progressitas brasileiros frente a declarações de Mano Brown, ter admissões realistas de Marcelo Freixo ou apesar de declarações contudentes de Sérgio Vaz ("a esquerda fala para a classe média, a direita fala para os pobres"), não parece haver realmente uma frontalidade autocrítica. É frequentemente narrações que carregam consigo certo "monopólio de virtude", que justamente fazem fugir a compreensão de porque o Partido dso Trabalhadores perdeu para um candidato conservador, que exalta o Regime Militar e que conseguiu vender uma posição antissistêmica mesmo estando deputado desde a Redemocratização.

O discurso que reina nas narrações é "o errado venceu e quem se absteve foi omisso", repetido em algumas entrevistas, com vozes de oposição quase nulas (como um transeunte que demonstra incômodo por não conseguir terminar as frases) e a parcela autocrítica jamais parecendo o suficiente. Em outro momento, ao tentar se encenar uma cena de um eleitor de Bolsonaro ouvindo argumentos contrários, a filmagem é interrompida por alegar que não conseguem seguir em frente. Não dá para julgar reações espontâneas como aceitáveis ou não, mas é curioso justamente uma falta de espírito transgressor que pretenda ir além da própria cerca.

Difícil saber o quanto o filme mudou desde a sua captação até a montagem, mas o fato é que a narrativa tensionada como suspense, como tragédia inevitável, apressa bastante o que poderia revelar como experiência íntima (como, por exemplo, quando a atriz revela ao ex-marido Paulo Betti que foi xingada por estar correndo vestida de noiva - não vemos em tela, por exemplo). Outubro resulta então como um diário editado, onde tudo fica por alto e em seus piores momentos; é uma reflexão confusa, que não sabe muito onde quer xingar e recusa uma maior confrontação sobre o tema onde se debruça. Na busca por uma resposta, o documentário parece apenas reiterar o próprio ponto.

Mas, de qualquer forma, não dá para negar que não tenha algumas entrevistas valiosas (que competem espaço com algumas que são apenas lugares-comuns), com com algumas afirmações necessárias (se tardias demais, depende de qual lado da cerca você esteja olhando) e momentos sutis interessantes, como a participação de Gilberto Gil surgindo como uma voz de sabedoria no último momento do filme, talvez o momento onde o material filmado mais fala por si ao invés de ser forçosamente guiado como o resto, onde habitam vários quase-filme que jamais se resolvem de maneira satisfatória. Definitivamente, ainda não é o filme que sintetiza o zeitgeist brasileiro atual.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

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